Alunos de escola pública escrevem cartas com mensagens para mulheres com problemas de saúde no interior do Ceará


Projeto conquistou o segundo lugar no Ceará Científico entre as ideias que envolvem Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Alunos de escola pública escrevem cartas para mulheres com problemas de saúde no Ceará
Em um momento difícil da vida, uma carta chega às mãos com palavras de esperança. As destinatárias são mulheres hospitalizadas ou que enfrentam problemas de saúde física ou mental na cidade de Quixeramobim, situada no sertão central do Ceará. Os autores são alunos de uma escola pública da mesma cidade.
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A atividade vem do projeto “Interação: os plurais de causas singulares”, desenvolvido na Escola Estadual de Educação Profissionalizante José Alves da Silveira.
Os estudantes escrevem cartas sem saber para quem serão entregues. Nelas, fazem um exercício de empatia ao tentar levar alegria e construir mensagens inspiradoras para quem está em sofrimento. Eles são estimulados a produzir cartas, crônicas, poemas e fábulas, aprendendo também sobre gêneros textuais.
Todos os meses, as cartas são levados para mulheres de quatro instituições:
Hospital Regional do Sertão Central
Hospital Regional Dr. Pontes Neto
Centro de Atenção Psicossocial Dr. Laerson Bezerra de Castro
Instituto Luz e Vida, que presta apoio a pessoas com câncer
A iniciativa ganhou reconhecimento no mês de dezembro, ao conquistar o 2º lugar na feira Ceará Científico, promovida pela Secretaria da Educação do Ceará (Seduc). O projeto competia com escolas de todo o estado na categoria Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
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O Ceará Científico busca extrapolar a dimensão cognitiva, incorporando e reconhecendo projetos escolares que falam de inclusão. Em 2024, o tema foi “Mulheres e Ciências: caminhos para a equidade de gênero”.
Em Quixeramobim, o projeto conseguiu estabelecer vínculos com as mulheres alcançadas pelas mensagens e despertar um olhar de empatia nos estudantes envolvidos.
Educando para a vida
Projeto leva alunos à prática de diferentes gêneros textuais nos anos do Ensino Médio
Arquivo Pessoal
Como unidade de educação profissionalizante, a escola José Alves da Silveira oferta uma base técnica, na qual os alunos devem escolher entre os cursos de Nutrição, Informática, Edificações e Agronegócios.
Estes conteúdos são combinados com o currículo convencional do Ensino Médio, e os estudantes permanecem na escola em tempo integral. Assim, a formação busca preparar os alunos tanto para o mercado de trabalho como para a vida acadêmica.
Os projetos desenvolvidos na unidade buscam estabelecer ainda mais possibilidades na vida escolar. A iniciativa das cartas para mulheres foi um destes exemplos, no qual a professora Rayane Fernandes, orientadora do projeto, tentou conectar os alunos com as diversas realidades enfrentadas pelas mulheres da região.
Rayane é professora de Língua Portuguesa e Redação na escola desde 2017. Há seis anos, está sempre à frente de projetos que adaptam novas ideias para o contexto científico: com objetivos, justificativas e metodologias.
Os elementos para o projeto Interação começaram a se desenhar no início de 2024, quando a professora propôs aos alunos a produção de cartas para o Dia da Mulher. Foi uma primeira ação em parceria com o Hospital Regional do Sertão Central, levando cerca de 50 cartas para as mulheres internadas na unidade. A ideia foi apresentada durante uma aula.
Concentração e melhoria na produção escrita foram alguns dos resultados observados no projeto Interação
Arquivo Pessoal
“Eles ficaram fascinados. E começamos a escrever. Eu peguei essas cartas, trouxe pra casa, corrigi todas. Eu tive mais ou menos 50 cartas, eu tive todo o cuidado, li todas e fiz correção”, detalha a professora.
Emoção com as cartas
A emoção das mulheres que receberam os textos animou a professora e os alunos. E a repercussão da iniciativa levou à formulação do projeto, que foi intensificado a partir do mês de agosto. No segundo semestre de 2024, estudantes de todas as séries foram envolvidos na iniciativa.
Para manter uma produção mensal, o projeto ofertou aulas teóricas sobre vários gêneros textuais. Com isso, os alunos passaram a ter mais conhecimentos para exercitar a própria escrita. Foi tempo também de superar os medos, pois alguns estudantes não achavam que seriam capazes de construir uma crônica ou um poema.
“Foi um negócio que mexeu demais com a escola. Eles mudaram de comportamento, ficaram mais concentrados. No início, alguns desistiam de escrever. Mas os mesmos que resistiram, viraram alunos muito assíduos [no projeto]. Aqueles que só conseguiam escrever duas ou três linhas agora escrevem 17 ou 18 com facilidade”, comemora a orientadora.
Nos meses de projeto, a professora Rayane também comemora um salto no volume de empréstimos de livros na biblioteca da escola. Ela envolveu cerca de 530 alunos, de todas as séries da unidade. Dentre os ganhos no aprendizado, ela destaca a preparação dos estudantes para escrever boas redações em futuros processos seletivos.
Como explica, expandir as habilidades em outros gêneros ajuda os alunos nas provas de outros vestibulares além do Enem, como o da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Outro benefício é desenvolver também a aptidão para a escrita.
Motivação e empatia
Carta escrita por aluna da escola para mulheres que enfrentam o câncer em Quixeramobim
Arquivo Pessoal
A hora de escrever as cartas não tem ajuda dos celulares. Os alunos precisam estar concentrados no que aprenderam e nas mensagens que querem transmitir para mulheres que nem conhecem.
“Eles têm aquela preocupação: ‘eu vou escrever para outra pessoa, outra pessoa vai ler’. Então tem o vestibular, tem o Enem no futuro… Mas tem também a prática da cidadania. É uma aprendizagem significativa, eles veem sentido naquilo que estão fazendo. Eu peço que eles escrevam a melhor mensagem, que emanem boas energias e falem sobre esperança, sobre recomeço”, partilha a professora.
Alguns resultados da iniciativa foram uma surpresa. No início, tanto os alunos quanto a professora se enxergavam apenas como remetentes das cartas. Mas algumas mulheres começaram a escrever de volta.
“Nas respostas que elas mandaram, elas diziam assim: ‘eu precisava receber essa carta, essas palavras foram feitas para mim’. Algumas dizem que aquela foi a única expressão de carinho que receberam em anos. Existem muitos relatos: de mulheres abandonadas pelos filhos, pelos maridos, demitidas do trabalho, mulheres sem fonte de renda”, detalha Rayane.
A orientadora conta com o auxílio de dois alunos à frente do projeto: Pedro Lucas Lima e Diêgo Costa. Ambos cursando nutrição na base técnica da escola, os estudantes são responsáveis por apresentar a iniciativa em feiras e eventos, corrigir os textos e fazer as entregas das cartas.
Para eles, a criação de vínculos com as mulheres alcançadas pelas cartas tem sido mais forte.
Aos 16 anos, Diêgo teve um contato inicial como apoiador da primeira ação, que levou as cartas do Dia da Mulher ao hospital regional. Além de ter se aproximado mais da escrita e da produção de textos, ele agora costuma visitar as instituições e conversar com as mulheres atendidas, principalmente no CAPS e no Instituto Luz e Vida.
Alunos entregam cartas para mulheres atendidas pelo CAPS em Quixeramobim
Arquivo Pessoal
Um dos momentos marcantes para ele foi estar em uma reunião em que uma das mulheres leu, em voz alta, o texto que ele mesmo tinha escrito na escola — palavras que ele havia destinado a uma pessoa até então desconhecida.
“Eu aprendo principalmente que a gente não pode tirar a doença de uma pessoa. Às vezes, a gente se sente impotente. E a gente não pode tirar a doença, mas a gente pode tirar feridas emocionais. Inclusive as minhas. Porque a gente entende que, quando a gente acolhe estas mulheres, a gente é mil vezes mais acolhido”, comenta Diêgo.
Pensando no que precisa desenvolver para tentar entrar na universidade, Diêgo também considera importante as habilidades desenvolvidas com a participação em feiras e competições, com falas em que precisa defender o projeto e falar dos objetivos e resultados.
Pedro Lucas Lima, estudante de 17 anos, também se interessa pela proposta de iniciação científica trabalhada na escola. Para ele, juntar esses projetos com a paixão pela leitura trouxe mais motivação para os estudos.
“Na época da pandemia, eu tive muita dificuldade em matemática e em português. Isso está me prejudicando até hoje no Ensino Médio. Então eu e vários alunos vimos esses gêneros [textuais] e estamos trabalhando isso. E isso nos ajuda muito na redação”, explica o aluno.
Também à frente para apresentar o projeto e visitar as instituições, ele conta que aprendeu com as mulheres a repensar a própria vida e a não reclamar ao passar por problemas pequenos.
“Elas passam por problemas extremamente difíceis, como a batalha contra o câncer. E elas lá, sorrindo, acolhendo a gente. Na primeira visita, nós fomos com um abraço, e elas vieram com vários. Às vezes, a gente encontra elas na rua, elas falam e brincam com a gente. Elas torcem muito pela gente, e isso é grandioso porque a gente esperava dar o apoio e recebeu mais ainda”, conta Pedro Lucas.
O carinho das mulheres alcançadas pelas cartas se expressa também na amizade formada com os alunos da escola e até no desejo de estar na cerimônia de formatura deles.
Outras ações dentro do projeto
Projeto conquista segundo lugar na feira Ceará Científico na categoria de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias
Arquivo Pessoal
O resultado alcançado pelo projeto no Ceará Científico foi fruto de várias etapas. Na primeira, a iniciativa concorreu com outras dentro da própria escola.
Em seguida, veio a fase regional, na qual a escola competiu com outras unidades da mesma Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação. Por fim, a fase estadual expandiu a competição para projetos de todo o Ceará.
Depois da conquista do segundo lugar na feira em 2024, o projeto Interação tem outros caminhos a percorrer. Um deles é a compilação para que os textos de alunos e pacientes sejam transformados em um livro, chamado de “Universos Particulares”.
A iniciativa também faz outras ações pontuais, como a entrega de cartas para pacientes do Instituto do Câncer do Ceará, em Fortaleza. Em Quixeramobim, os alunos também participam de um grupo de escrita e leitura, produzindo textos em cordel para homenagear mulheres da cidade com histórias de superação.
O próximo desafio é dar continuidade ao projeto, incorporando o tema que deve ser proposto pelo Ceará Científico em 2025, aliando a produção científica à questão ambiental.
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