‘Emilia Pérez’, ame ou odeie: como rival de ‘Ainda Estou Aqui’ no Oscar foi de queridinho da crítica a filme mais zoado do ano


Veja cinco argumentos de quem critica e de quem elogia o drama musical francês sobre líder de cartel mexicano que passa por cirurgia de transição de gênero e se torna ativista. Karla Sofía Gascó e Zoe Saldana em cena de ‘Emilia Pérez’
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O maior concorrente de “Ainda Estou Aqui” na provável disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional não é exatamente uma unanimidade. Longe disso. Nas redes sociais, trechos dos números musicais de “Emilia Pérez” têm sido zoados por brasileiros na torcida pelo longa estrelado por Fernanda Torres e por fãs de “Wicked”, o outro musical desta temporada de premiações. São cenas que, de fato, geram controvérsia, mas fazem mais sentido no contexto do roteiro.
Só que as críticas não param por aí. Há textos mais sérios que questionam como a sociedade mexicana e a vida de uma mulher trans são retratadas. Desde que foi exibido (e premiado) no Festival de Cannes, em maio passado, o longa vem dividindo opiniões. E levando prêmios, como quatro Globos de Ouro. Abaixo, entenda como “Emilia Pérez” foi de queridinho da crítica a filme mais zoado do ano.
O QUE DIZ QUEM CRITICA O FILME?
Representação trans: Trata a identidade trans como um disfarce, como nas comédias “Tootsie” e “Uma Babá Quase Perfeita”;
Erros culturais: Há uso incorreto de termos em espanhol e representação inadequada da população mexicana.
Estereótipos: Procedimentos cirúrgicos (na música “La Vaginoplastia”) e a reação aos hormônios são simplistas.
De vilão para heroína: É problemático ao mostrar a transição de gênero como uma forma de redenção moral.
Desconectado do México: Tem pouca pesquisa e foi filmado fora do México e quase sem atores mexicanos.
O QUE DIZ QUEM ELOGIA O FILME?
Originalidade: Misturar estilos e temas, criando uma trama única e inovadora que chamou atenção em festivais.
Ótima protagonista: Karla Sofía Gascón é elogiada até por quem critica o filme, tanto pela sua atuação quanto por ela ser trans.
Parte musical: A crítica especializada aprovou a inventiva trilha sonora composta por Camille e Clément Ducol.
Apoio de Hollywood: Denis Villeneuve, Meryl Streep, Guillermo del Toro e outros destacaram a coragem e a beleza do filme.
México também é assim: Há mexicanos, como a atriz Adriana Paz (namorada de Emilia Pérez), que dizem que o roteiro não é ofensivo.
Assista ao trailer do filme “Emilia Perez”
“Emilia Pérez” é um drama criminal musical em espanhol, dirigido por um francês que não fala o idioma. A trama se passa no México, mas foi quase toda filmada na França e sem uma mexicana no trio principal de atrizes. Por outro lado, o filme foi elogiado por sua originalidade em misturar estilos e temas, em uma trama estrelada por uma atriz que pode se tornar a primeira transexual a ganhar um Oscar em uma categoria de atuação.
Esta não foi a primeira vez que o diretor Jacques Audiard dirigiu um elenco que não fala francês. Em “Dheepan: O Refúgio”, ele trabalhou com atores falando principalmente em tâmil, uma língua comum no sul da Índia. “Não conhecer a linguagem me dá uma qualidade de distanciamento. Quando dirijo na minha própria língua, fico preso aos detalhes”, justificou-se o cineasta.
Qual a história de ‘Emilia Pérez’?
Adaptada do romance ‘‘Ecoute’’, do francês Boris Razon, a trama começa com a história de Rita (Zoe Saldana, americana de origem dominicana). Ela é uma advogada cansada de livrar criminosos da cadeia e recebe uma ligação de Manitas del Monte (Karla Sofía Gascón, espanhola já vista em novelas mexicanas), líder do cartel de drogas na Cidade do México.
Manitas quer que Rita o ajude a passar por uma cirurgia de transição de gênero. Quer ainda que ela tire sua esposa, Jessí (Selena Gomez, americana, de origem mexicana) e seus filhos do país para protegê-los de seus inimigos.
Karla Sofía Gascón vive a personagem-título de ‘Emilia Perez’
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O que diz a comunidade LGBT?
Para jornalistas e organizações da comunidade LGBT, os piores momentos de “Emilia Peréz” remetem a filmes como “Tootsie” e “Uma Babá Quase Perfeita”, nos quais a identidade trans é tratada como mero disfarce. Nessas comédias, porém, Dustin Hoffman e Robin Williams se vestem de mulher sabendo que o absurdo faz parte do filme. Neste drama, a troca de gênero faz com que a protagonista se recuse a ser responsabilizada por uma vida inteira de crimes.
Em “Emilia Pérez”, esse não era o efeito desejado. A transição de gênero deveria ter sido tratada com a seriedade que merece. Emilia tem uma transformação de vilã em heroína. A crueldade de Manitas (chefe do tráfico, responsável pelo desaparecimento de milhares de mexicanos) dá lugar à bondade de Emilia (criadora de uma ONG para encontrar desaparecidos).
A Aliança de Gays e Lésbicas contra a Difamação (Glaad, na sigla em inglês) disse que o filme é uma representação retrógrada das mulheres trans e “um passo para trás” na representação trans no cinema. A organização não é a única a dizer que o enredo é superficial e problemático, por retratar a transição de gênero como uma forma de redenção moral.
A inclusão de outros procedimentos (aumento de seios e rinoplastia) durante a cirurgia de redesignação sexual e a reação física aos efeitos dos hormônios no corpo são vistas como simplistas. Esse também é o adjetivo mais usado para criticar a música “La Vaginoplastia”. A letra apresenta uma explicação da cirurgia de redesignação de gênero com versos como “Penis to Vagina / Vagina to penis”. Mais perto do final do filme, a filha de Emilia diz que ela “tem cheiro de homem”. A cena também foi criticada.
Karla Sofia Gascón interpreta o líder de cartel Manitas del Monte em ‘Emilia Pérez’
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Jornalistas de sites “queer” como o Autostraddle também analisaram o filme. Em um artigo, a jornalista Drew Burnett Gregory resumiu o que sente ao ver clichês como a transição ser quase uma morte ou o abandono de filhos e esposa antes da cirurgia. “Não me ofendo”, comenta Drew. “Não se trata de ofensa ou de não ser permitido fazer isso. O negócio é que tudo isso é muito previsível.”
Um texto publicado no site Them, outro com temas ligados à comunidade LGBTQ, traz outra observação sobre o roteiro: “Se o filme tivesse entendido que ‘Não, Emilia realmente é a vilã!’, e ela continuasse com seu péssimo comportamento, talvez assassinasse mais pessoas, perdesse o controle, alimentasse seu próprio absurdo… agora teríamos um filme que eu gostaria de ver”.
O que dizem alguns mexicanos?
A comunidade “queer” não foi a única a chiar. Espectadores e profissionais mexicanos afirmaram que o filme está cheio de estereótipos e erros culturais. O diretor de fotografia Rodrigo Prieto (“Barbie”, “Brokeback Mountain”, “O Lobo de Wall Street”) deu um exemplo: uma placa de uma prisão no filme diz “Cárcel”. Segundo ele, qualquer mexicano sabe que o termo correto seria “Penitenciaria”. “São apenas os detalhes, e isso me mostra que ninguém que sabia estava envolvido. E nem importava. Isso foi muito preocupante para mim”, disse Prieto.
Há mais exemplos de desconexão com a realidade mexicana. Mexicanos que assistiram ao filme em festivais disseram que as cenas com multidões não representam bem a população: há mais negros dentre os figurantes do que se vê no país. O jornalista mexicano Luis Pablo Beauregard publicou no jornal “El País” um texto focado na “frivolidade” com a qual o desaparecimento de milhares de pessoas no México é retratado. Para ele, o filme minimiza a gravidade da situação real no país.
Karla Sofía Gascó e Zoe Saldana em cena de ‘Emilia Pérez’
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Quando perguntado sobre dificuldades em retratar a realidade no México, o diretor deixou claro que não pesquisou tanto assim: “Eu não estudei muito… o que eu tinha que entender eu já sabia um pouco”. Audiard disse ter ido “três ou quatro vezes” ao México, mas pensou que seria “limitador” filmar fora da França.
Quem elogia o filme?
O filme encontrou defensores como o diretor canadense Denis Villeneuve e a atriz americana Meryl Streep. Eles elogiaram a originalidade e a coragem do filme. Guillermo del Toro (diretor mexicano ganhador de três Oscars) é outro que elogiou. Disse que o filme é “lindo”. Para ele, Jacques Audiard é “um dos cineastas mais incríveis da atualidade”.
A trilha sonora, composta por Camille e Clément Ducol, foi igualmente elogiada pela crítica, principalmente pela inventividade. As coreografias e arranjos pouco pomposos, mais orgânicos, também chamaram a atenção.
A escolha de Karla Sofía Gascón como protagonista foi destacada por quase toda a crítica especializada. Além da atuação digna de premiações, é de se levar em conta o fato de ela ser trans. Ainda existe a discussão sobre pessoas cisgênero sendo escaladas para interpretar personagens trans. Quando isso acontece, há muitas críticas, como aconteceu no fim do ano passado na segunda temporada da série sul-coreana “Round 6”.
Selena Gomez em cena de ‘Emilia Peréz’
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Karla Sofía fez comentários quando leu uma das primeiras versões da história. Ela pediu que o roteiro tivesse mais nuances ao representar a experiência trans. Hoje, ela é uma das maiores defensoras do filme. “Infelizmente, as redes sociais se tornaram, para muitos, um instrumento a serviço da escuridão, onde imperam os insultos, a violência, o ódio, a mentira e o assédio.”
Ela também disse que “tem muito blogueiro que se acha especialista e muitos gatos que acham que sabem de cinema, quando o que sabem é arranhar”. “Então, o que posso dizer? Quem não gostar, que vá ver outra coisa no cinema… A maioria do público é inteligente e sai emocionadíssima em todos os países.”
Audiard disse que se esforçou para contextualizar que sua protagonista sempre desejava ser mulher. No romance original que inspirou o filme, esse desejo não é tão explorado e a transição parece uma mera tentativa de mudança de identidade para escapar do passado de chefe do tráfico.
Adriana Paz é a única mexicana no elenco principal de ‘Emilia Pérez’
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Única mexicana do elenco principal, Adriana Paz interpreta Epifanía, par amoroso de Emilia. Ela elogiou o filme por “capturar de maneira única a sensação de viver no México”. “Ouvi pessoas dizendo que é ofensivo ao México. Eu realmente quero saber por quê. Não me senti assim. E questionei algumas pessoas em quem confio, não apenas como artistas, mas como pessoas, e elas também não se sentiram assim, então estou tentando entender.”
A diretora de elenco Carla Hool explicou que os papéis foram adaptados para justificar os sotaques dos atores, buscando autenticidade na representação. Selena Gomez, que interpreta a esposa de Manitas, recebeu críticas por sua atuação em espanhol.
É um exagero: o espanhol meio truncado de Selena é compatível com a origem da personagem. A personagem é uma americana de origem mexicana, assim como a atriz. Mesmo assim, Selena lamentou: “Gostaria de ter tido mais tempo para praticar meu espanhol antes de participar do filme.”
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