Após filho trans de 10 anos fazer acompanhamento no HC da USP, mãe também faz transição: ‘Agora sou o Raphael, pai do Gustavinho’


Transição de gênero dele começou em 2024 em hospital público da rede municipal de saúde. Seu filho nasceu num corpo feminino, mas desde os 4 anos faz parte do programa que atende crianças transgênero no Hospital das Clínicas. CPI tentou barrar novos atendimentos em 2023. Raphael e Gustavo em dois momentos: à direita antes da transição do gênero feminino para o masculino; e à esquerda após começarem a transcionar
Divulgação/Arquivo pessoal
“Agora sou o Raphael, pai do Gustavinho”, disse o encarregado de logística Raphael Batista nesta semana ao g1. Ele se assumiu homem trans após o filho também transgênero fazer acompanhamento no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP).
Os dois nasceram com características biológicas femininas, mas se identificam como sendo do gênero masculino. O pai falou que faz sua transição no Hospital Municipal do Campo Limpo.
As duas unidades médicas são da rede pública e oferecem serviços gratuitos para trans, seguindo protocolos previstos no Sistema Único de Saúde (SUS) do Ministério da Saúde, além de recomendações do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Esta quarta-feira (29) é o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data reafirma a importância de se intensificar ações de combate ao preconceito e violência contra uma comunidade tão vulnerável no país, como a de pessoas transgêneros e travestis.
Raphael tem 38 anos. No ano passado, parou de se identificar com o gênero feminino e pediu para ser chamado pelo masculino. Contou a decisão para a família e para seus mais de 24 mil seguidores nas redes sociais. Ele e o filho têm uma página conjunta no Instagram, em que mostram fotos, vídeos sobre suas rotinas e também falam sobre transexualidade.
Gustavo é estudante e ator. Já fez filmes interpretando crianças trans e meninos cisgêneros. Está com 10 anos, mas começou a transicionar aos 4, quando passou a ser atendido pelo Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Instituto de Psiquiatria, e pela Unidade de Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do HC da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
‘Percebi que o Gustavo era uma criança trans quando ele tinha 2 anos’, diz mãe
O g1 já havia conversado com os dois em 2023, quando publicou uma reportagem sobre 380 pessoas identificadas como trans que faziam transição de gênero no HC (veja vídeo acima). Desse total, 100 eram crianças de 4 a 12 anos, 180, adolescentes de 13 a 17 anos, e 100 eram adultos a partir dos 18 anos que haviam começado o acompanhamento com menos idade.
Naquela ocasião, Gustavo ainda chamava Raphael pelo nome feminino. “Não foi difícil chamar minha mãe de pai”, disse o menino nesta semana ao g1. O pai biológico do menino não mora com ele.
Gustavo ainda tem mais dois irmãos, filhos de Raphael, e que residem na mesma casa com eles: uma adolescente de 16 anos, que se identifica como não binária, e um garoto de 13 anos que é cisgênero (clique aqui para saber mais sobre o significado de cada um desses termos).
“Eu acho importante a questão do Dia da Visibilidade Trans por conta também de que eu me sinto melhor assim, sendo quem eu realmente sou”, afirmou Gustavo.
Quem também se sente bem é Raphael, que finalmente se mostra como é. “Eu já tive muitos problemas com a transição do meu filho por ter sido uma mulher lésbica. Então imagina eu dizer que estava transicionando também…”
Tanto o filho quanto o pai disseram que as decisões sobre a transição de gênero não foram influenciadas por nenhum deles.
“Eu sei o que eu estou falando”, diz Gustavo num dos vídeos postados na página que tem com o pai na internet. A declaração foi dada ao responder uma pergunta feita por Raphael se o filho sabia o que estava dizendo sobre ser uma criança trans.
“Não teve nenhuma influência, mas ele [Gustavo] me deu forças e coragem para enfrentar [a transição]”, falou Raphael ao g1.
CPI investigou programa
CPI da Transição de Gênero aprovou relatório contra o tratamento
Divulgação/Carol Jacob/Alesp
Devido à matéria sobre o atendimento de crianças e adolescentes trans pelo HC da USP, alguns deputados estaduais conseguiram instalar na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Transição de Gênero. Parlamentares contrários ao atendimento de menores de 18 anos queriam saber se esse acompanhamento era legal e se seguia as recomendações médicas já estabelecidas nos conselhos superiores do país.
Por cinco votos a favor e três contrários, os deputados aprovaram em 2023 o relatório final da CPI. Ele pedia, entre outras coisas, a suspensão de novos atendimentos de pessoas trans no Hospital das Clínicas. Segundo alguns parlamentares, havia suspeita de irregularidades no programa.
O documento solicitava também providências de diversas autoridades e seguiu para a análise de órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) e o governo de São Paulo.
O MPF chegou a investigar o Amtigos e concluiu que não havia nada ilegal no acompanhamento dos transgêneros. E que o atendimento de crianças e adolescentes que se identificam como trans no HC segue as recomendações e protocolos dos conselhos de medicina.
Por esse motivo, determinou o arquivamento do caso, que já foi homologado pela Justiça Federal. “O caso foi objeto de um inquérito civil que tramitou ao longo de 2024. Após uma série de informações prestadas, o MPF arquivou a apuração”, informa nota da Procuradoria.
O que dizem os citados
Instituto de Psiquiatria do HC da Faculdade de Medicina da USP acompanha crianças, adolescentes e adultos trans, além de suas famílias
Divulgação/HCFMUSP
Procurados pelo g1 para comentar o assunto, o governo estadual e o Hospital das Clínicas informaram que iriam se pronunciar por meio de nota divulgada pela Secretaria de Estado da Saúde.
“O Hospital das Clínicas da FMUSP informa que todos os tratamentos e procedimentos oferecidos a seus pacientes seguem protocolos previstos no rol de atendimento do SUS e regulamentação do Conselho Federal de Medicina, bem como diretrizes de centros de excelência”, diz o comunicado da pasta.
Como nada foi provado contra o Amtigos, o Hospital das Clínicas continua atendendo novas crianças e adolescentes trans. O número atual de acompanhamentos não foi informado.
Caso seja comprovado por meio de avaliação criteriosa feita por equipe multidisciplinar (composta por psicólogos, pediatras, psiquiatras e endocrinologistas) que são de fato transgêneros, crianças e adolescentes poderão ser submetidos a bloqueadores hormonais, mas apenas a partir da puberdade.
Eles também recebem hormonização cruzada na adolescência, a partir dos 16 anos, com hormônios do gênero com que se identificam. Se houver necessidade de cirurgia para colocação de implantes ou readequação da genitália, a “redesignação sexual”, esses procedimentos só poderão ser realizados na fase adulta.
Além dos filhos, a família de quem passa por uma eventual transição também é acompanhada por uma equipe multidisciplinar. O processo pode ser interrompido a qualquer momento, dependendo da decisão ou da avaliação de alguma das partes envolvidas.
O que são transgêneros
Alexandre Saadeh fala sobre o Amtigos
Em entrevista ao g1 em 2023, o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos, explicou termos usados na transexualidade (veja vídeo acima).
“O termo transgênero é um termo guarda-chuva e se refere a qualquer variedade de gênero, sejam transexuais, travestis, gênero não binário, agênero, gênero fluído”, disse Saadeh naquela ocasião.
Segundo o especialista, no caso dos transgêneros, existe uma hipótese científica de que essa identidade de gênero se manifeste no cérebro na formação do bebê, ainda na fase intrauterina, depois do desenvolvimento dos órgãos sexuais.
Em outras palavras, de acordo com Saadeh, isso quer dizer que alguém que nasce com a genitália feminina não necessariamente terá um cérebro feminino. E vice-versa.
“Aliás, é importante falar que a questão trans, a transexualidade ou qualquer variabilidade de gênero não é considerada uma doença”, disse o psiquiatra.
Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID) e passou a ser considerada uma “condição”.
Veja onde fica o Amtigos
Guilherme Luiz Pinheiro/g1-Design
LEIA MAIS:
Vereador quer CPI sobre transição de gênero de 280 crianças e adolescentes no HC da USP
‘A gente sempre vai existir, não é doença’, dizem gêmeas trans
Garoto de 14 anos fala sobre apoio da família após se assumir transgênero
‘Tentativa de criminalizar infâncias trans’, diz Erika Hilton sobre pedido de CPI para investigar transição de crianças e adolescentes no HC da USP
Bookmark the permalink.