Como ficaria a Argentina se feminicídio for apagado da lei?

Casa Rosada, sede do governo Milei, em Buenos AiresReprodução

O governo de Javier Milei, na Argentina, anunciou a revogação da lei do feminicídio no país. Especialistas e governantes entraram em conflitos sobre a decisão, que desconsidera a gravidade desse tipo de crime no país.

A partir do anúncio, diversos condenados por feminicídio poderiam solicitar redução da pena e serem libertados antes do previsto da prisão, ignorando o princípio adotado hoje de que a família é bem jurídico destinado à proteção especial. As informações são de La Nacion, jornal argentino.

Milei critica feminicídio

Para Milei, como ele mesmo disse em discurso em Davos, a questão do gênero no crime do assassinato não faz sentido. E ele não acredita que o assassinato de mulheres deveria gerar uma pena maior.

“Chegamos mesmo ao ponto de normalizar que em muitos países supostamente civilizados, se alguém mata uma mulher, isso é chamado de ‘feminicídio’, e isso acarreta uma pena mais grave do que se alguém matar apenas um homem. O gênero da vítima [diz], de fato, que a vida de uma mulher vale mais que a de um homem?”

Eliminar a figura do feminicídio

O governo Milei quer trabalhar em um projeto de lei mais amplo e geral do que existe hoje, e incluir aspectos diferentes relacionados à violência de gênero. Após as falas do presidente, Mariano Cúneo Libaróna, ministro da Justiça, disse nas redes sociais:

“Vamos eliminar a figura do feminicídio do Código Penal Argentino; porque esta administração defende a igualdade perante a Lei consagrada na nossa Constituição Nacional. Nenhuma vida vale mais que outra.”

Manuel Adorni, porta-voz da presidência, deu coro à opinião, e disse a uma repórter mulher da agência EFE: “Sinceramente, se me matarem e matarem você também, gostaria que o tratamento fosse igualitário e não que você não tivesse nenhum tipo de conotação adicional para isso”.

Especialistas alertam para riscos

Após a declaração do governo, técnicos e especialistas em legislação alertaram o governo Milei que a mudança da lei pode fazer que assassinos condenados sejam libertados antes do previsto.

A “lei mais benigna” permite ao preso a condenação mais curta. Sem o agravante de feminicídio, homicídios do tipo seriam considerados “simples” – e teriam pena a partir de apenas oito anos; hoje, a condenação é prisão perpétua. Algumas das vantagens que os presos teriam seriam:

  • Fim da prisão perpétua;
  • Redução de pena;
  • Liberdade condicional

“Uma eventual repressão aos homicídios qualificados por questões de gênero daria origem a apelos de revisão por parte dos condenados, o que os beneficiaria na sua situação, quer reduzindo as penas, quer favorecendo a sua libertação antecipada”, disse um dos integrantes da Ordem dos Advogados, Ricardo Gil Lavedra, à Nacion.

Decisões judiciais

Existem dois tipos de assassinatos para mulheres: o simples e o feminicídio. O feminicídio foi definido em 2008 no Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI) e pode ser descrito como:

“Morte violenta de mulheres por razões de gênero, quer ocorra no seio familiar, no agregado doméstico ou em qualquer outra relação interpessoal; na comunidade, por qualquer pessoa, ou que seja perpetrado ou tolerado pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão.”

O feminicídio acontece, então, quando um homem mata uma mulher usando, se baseando ou aplicando algum dos aspectos da violência de gênero – a lei argentina define esta como “uma manifestação da desigualdade estrutural e histórica que existe entre homens e mulheres presentes na sociedade patriarcal” são mortas num “contexto de dominação ou que, através dela, poderia ter sido implantado um controle coercitivo geral”.

Algumas das definições da violência de gênero são, na lei atual argentina:

  • Tipo de prática do ato
  • Violências anteriores
  • Crueldade especialmente demonstrada
  • Seleção da vítima por ser mulher;
  • Tipo de abordagem
  • Ligação com ataque sexual
  • Estado de indefesa da vítima
  • Inferioridade física.

Mais de 300 condenações

Atualmente, há pelo menos 306 condenações por feminicídio, segundo a Promotoria Especializada em Violência contra a Mulher da Procuradoria-Geral da República. Em apenas 10 desses 306 casos de condenações por feminicídio não foi aplicada prisão perpétua.

Além disso, a Procuradoria da Mulher do Supremo Tribunal de Justiça elaborou um relatório, disponível no site do tribunal há mais de um ano, que indica que, de 2017 a 2023, as acusações iniciais nos casos de homicídios agravados por violência de gênero aumentaram em 21,9%.

Elas passaram de 56,9% dos casos em 2017 para 78,8% em 2023. A média de denúncias iniciais que incluíam violência de gênero em todo o período (2017 – 2023) foi de 65,9%. Esse número sobe para 66% se for considerada também a agravante do ódio de gênero.

No caso de mortes de mulheres trans e travestis, foram 39 vítimas entre 2017 e 2023. Em 13 casos houve o agravante de ódio à identidade de gênero, em cinco houve o agravante de violência de gênero e nos 17 restantes nada disto aconteceu. Dos 3 casos de travesticídio/transfemicídio com denúncias a partir de 2023, todos tiveram como agravante o ódio de gênero.

O estudo foi realizado considerando 1.593 acusações iniciais contra homens por violência de gênero entre 2017 e 2023, com 1.482 vítimas de feminicídios diretos.

Quando ocorre o feminicídio?

Um feminicídio é sempre um homicídio, ou seja, a morte de uma pessoa pelas mãos de outra. No entanto, o assassinato de uma mulher não é necessariamente um feminicídio, explica a Promotoria Especializada em Violência contra a Mulher. Em seu protocolo de investigação desses casos, ele menciona o que diferencia o homicídio de uma mulher do feminicídio; “Para que isso constitua algo assim, deve haver uma violência particular, que seja enquadrada em um contexto específico. A diferença substancial entre feminicídio e homicídio é que o primeiro é determinado por razões de gênero. O feminicídio restabelece e perpetua os padrões que foram culturalmente atribuídos às mulheres: subordinação, fraqueza, sentimentos, delicadeza, feminilidade, etc. Os feminicídios estão enraizados em um sistema que reforça a discriminação e o desprezo contra as mulheres e suas vidas. Por sua vez, eles reproduzem estereótipos de masculinidade associados à força física e ao poder de controlar as vidas e os corpos das mulheres, preservando, em última análise, ordens sociais de inferioridade e opressão.”

Assim, os feminicídios, definidos como mortes violentas por razões de gênero, estão tipificados desde 2008 no Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI), que opera no âmbito da OEA.

Trata-se de: “A morte violenta de mulheres por razões de gênero, seja no seio da família, da unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal; na comunidade, por qualquer pessoa, ou que seja perpetrado ou tolerado pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão.”

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