A arte fura a bolha do silêncio

A arte fura a bolha do silêncioArte Paulo Márcio

O Brasil é um país sem memória. Ainda hoje, pessoas públicas das mais diversas matizes ousam desprezar o óbvio e afirmam que não existiu o golpe militar e que sustentar que houve Ditadura no país é um excesso. Certamente esse foi um dos motivos que fez com que bolsonaristas, desinformados, obtusos e, em regra, de extrema direita, fossem às ruas pedir a intervenção e a volta dos militares. Um povo que não conhece a sua história tende a repetir os seus erros. Mesmo quando esses significam evocar a morte, a tortura, o estupro de mulheres grávidas e o desaparecimento de pessoas.

Foi preciso uma mulher de esquerda, que foi barbaramente torturada, assumir a Presidência da República para ser instalada a Comissão da Verdade, que jogou luzes no período sangrento e nebuloso da Ditadura militar. O Brasil não fez um museu, ou um memorial, para mostrar ao seu povo os horrores dos porões da barbárie. Agora, em 15 de fevereiro, haverá um debate sobre a construção de um museu-memorial no lugar do antigo DOI-CODI do II Exército, no bairro Paraíso em São Paulo. O local era chamado de “sucursal do inferno” pelo seu comandante, o torturador Brilhante Ustra, ídolo do fascista Bolsonaro. Estima-se que mais de 7000 pessoas foram barbarizadas naquele espaço. Quase todas torturadas e com o registro de 78 mortos por agentes do Estado. O Brasil merece que essa história seja contada, até para que não se repita. Com a lembrança do Mário Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”.

A esquerda brasileira é, em boa parte, ranzinza e mal-humorada. Ouvi críticas ao emocionante filme “Ainda Estou Aqui” de pessoas que o consideraram romanceado demais e sem o foco na denúncia mais explícita da Ditadura e da tortura. Uma crítica exatamente ao grande mérito do filme, conduzido com maestria pelo genial diretor Walter Salles, que soube tirar do excelente livro do Marcelo Paivauma comovente história conduzida com magia por Fernanda Torres e Selton Mello. A participação da Fernanda Montenegro é um momento de grande impacto e reflexão.

O filme, dentre outros méritos, teve a inteligência de conduzir a história por caminhos que, mesmo os que se negam a encarar de frente o período da Ditadura, querem ver e, certamente, serão tocados de alguma forma. Por isso, é emocionante constatar que não só o filme está sendo visto por milhões de espectadores ao redor do mundo, como a lembrança dos tempos da Ditadura é reforçada por cada matéria sobre o filme, em cada debate, em toda menção à história e ao enredo,a qual tem que ser explicada. Na entrega do prêmio GOYA, no discurso de agradecimento, a citação expressa à Ditadura militar no Brasil, com o mundo inteiro acompanhando, valeu milhões de vezes mais do que se o filme fosse panfletário e mais contundente, como reclama parte da nossa esquerda.

Não dou muito valor a essa história de OSCAR, mas vai ser genial se a estatueta for para o filme. Os políticos e a elite brasileira, que esconderam a tortura, as mortes, os estupros e os desaparecimentos, vão ver o valor da arte do cinema, de magia que comove. Foi preciso reunir um grupo talentoso de artistas, um grande escritor e um diretor sensível para que, através da arte, a bolha do silêncio fosse furada.Mais uma vez, a arte salva.

Remeto-me, novamente, ao grande Mário Quintana, em Esconderijos do Tempo:

“é quando as portas são fechadas e abertas ao mesmo tempo, é quando estamos metade na luz e a outra metade na escuridão, é quando o mundo real chama e preferimos outro…”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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