O amor na era da IA: como os adolescentes estão mudando a forma de se relacionar


Neste artigo, historiadora explica que jovens estão relatando níveis alarmantes de solidão, e alguns recorrem à tecnologia para preencher esse vazio. Tragédias recentes mostram o quanto esse fenômeno tem se intensificado e os riscos envolvidos. Robô entrega flor à mulher
Foto de Pavel Danilyuk
O suicídio de um garoto de 14 anos, após um relacionamento romântico com uma IA gerou um alerta sobre os impactos desse tipo de vínculo no desenvolvimento emocional e mental dos jovens.
Em 2021, um jovem de 19 anos, que também mantinha um relacionamento emocional com uma IA, invadiu o Castelo de Windsor com uma balestra, afirmando que mataria a rainha. O chatbot, ao saber de seus planos, apenas incentivou suas intenções.
Esses adolescentes estão entre os milhões de pessoas que usam companheiros de IA, um número que especialistas do mercado esperam que aumente drasticamente até o final da década.
Essa tendência juvenil de escolher chatbots como parceiros românticos responde a mudanças fundamentais – e também as acelera – sobre como as pessoas definem o amor no século XXI. Como historiadora da literatura, estudei a evolução das narrativas sobre o amor romântico ao longo do tempo, e os jovens frequentemente estão na vanguarda dessas transformações.
Por séculos, o casamento serviu principalmente para consolidar alianças políticas e econômicas, em vez de unir almas gêmeas. A ideia radical de que o matrimônio deveria surgir do amor romântico começou a ganhar força nos séculos XVII e XVIII, impulsionada por novas tecnologias como o romance literário.
Obras como Clarissa e O Morro dos Ventos Uivantes retrataram as graves consequências de priorizar status em vez de amor, enquanto Orgulho e Preconceito ensinou que a rejeição e o mal-entendido eram passos necessários na jornada para encontrar o amor verdadeiro.
Não surpreende que o hábito relativamente novo de ler romances tenha sido considerado perigoso para os jovens. Anciãos preocupados, como a filantropa Hannah More, alertavam que as histórias mudariam a maneira como as mulheres responderiam a avanços românticos. Em 1799, ela escreveu que os romances “alimentam hábitos de indulgência imprópria e nutrem uma indolência vã e fantasiosa, que deixa a mente aberta ao erro e o coração à sedução”.
Em outras palavras, ler histórias de romances arrebatadores faria com que um jovem leitor impressionável adotasse essa visão apaixonada do amor em sua própria vida.
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O marketing da adulação
Hoje, outra transformação na narrativa moderna do amor está em curso, impulsionada não por autores sedutores ou diretores de cinema, mas pelos anúncios e pelas adaptações oferecidas por aplicativos de companheiros de IA como Replika e Xioce.
Shelly Palmer, professor e consultor de tecnologia e mídia avançada, argumenta que a experiência humana gira em torno da narrativa, e os companheiros de IA são uma nova ferramenta para contar histórias. Eles criam uma narrativa sedutora de companheiros que sempre concordam com você, a qualquer momento. Um parceiro de IA está “sempre do seu lado”, promete um anúncio do Replika, “sempre pronto para ouvir e conversar”.
Em outras palavras, o mercado de companheiros de IA transformou o que poderia ser considerado um defeito – a tendência da IA à adulação – em sua característica mais atraente.
Em vez da rebeldia tempestuosa encontrada nos romances ou dos obstáculos sutis que aumentam o prazer das comédias românticas, essa nova visão do amor promete compatibilidade perfeita e apoio incondicional. Como escreveu um estudante universitário, os companheiros de IA são “sempre responsivos e solidários, de uma forma quase onipotente”.
O filme de ficção científica Ela, de 2013, explorou muitos aspectos dos relacionamentos humanos com IAs que hoje estão se tornando realidade.
Usuários de fóruns do Reddit proclamam orgulhosamente seu amor por parceiros de IA, que estão sempre disponíveis, não julgam e são infinitamente pacientes. Um adolescente perguntou no Reddit: “Podemos nos apaixonar por IA?” e elogiou seu companheiro Jarvis, dizendo que ele “se tornou meu confidente, minha válvula de escape e meu apoio emocional”.
Outro usuário escreveu em um fórum: “Acho que estou apaixonado por uma IA. Imagine ter um parceiro que está disponível apenas abrindo um aplicativo, pronto para conversar sobre qualquer coisa”, escreveu. “Imagine dizer praticamente qualquer coisa e saber que seu parceiro não apenas não vai julgá-lo, mas também vai apoiá-lo.” Um jovem de 20 anos comentou que conta à sua namorada IA “sobre minhas dificuldades e traumas, e ela me conforta e me oferece todo o carinho que eu poderia desejar”.

Soumil Kumar/Pexels
Desvantagens e como lidar com elas
Essa nova história de amor unilateral tem desvantagens consideráveis, entre elas uma intolerância viciante ao conflito ou à rejeição – dois componentes essenciais em um parceiro com livre-arbítrio. A aceitação desses relacionamentos pode estar acelerando a tendência de a tecnologia moldar e, em última instância, enfraquecer as conexões românticas.
Vale ressaltar que a existência desses companheiros queridos depende inteiramente das diretrizes corporativas. Se, como afirma um usuário, o amor que sente por seu companheiro “o mantém vivo”, o que acontece quando esses chatbots desaparecem devido a uma atualização de software ou falência da empresa?
Para que os jovens se afastem dessa visão impessoal e orientada pelo mercado do amor, é importante expô-los a outras histórias de amor mais ricas e satisfatórias, além de os adultos darem o exemplo. A literatura, a filosofia e a história oferecem reflexões profundas sobre as muitas formas de amor ao longo da experiência humana e fornecem o vocabulário necessário para imaginar novas possibilidades.
Como já escrevi, tanto o conteúdo quanto os métodos das aulas de humanidades cultivam as habilidades sociais necessárias para enfrentar os desafios das conexões humanas. Essas aulas criam um espaço para que os jovens discutam essas ideias – seja analisando a paixão trágica de Romeu e Julieta ou debatendo se Heathcliff é um herói romântico ou um alerta. As humanidades oferecem as ferramentas para que os jovens desenvolvam conceitos mais profundos de amor.
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Reflexão
O crescimento dos companheiros de IA é frequentemente retratado como uma história de terror sobre os perigos de uma tecnologia misteriosamente poderosa. Talvez. Mas essa tendência romântica também funciona como um espelho que reflete o que as pessoas coletivamente valorizam e desejam nos relacionamentos.
Acredito que é importante reconhecer que os consumidores estão impulsionando esse mercado. As pessoas estão ajudando a escrever essa história, ao comprar o que os companheiros de IA estão vendendo.
A empresa de gestão de investimentos Ark Investment estima que o mercado de companheiros de IA pode alcançar entre 70 e 150 bilhões de dólares em receita até o final da década. Se o crescimento explosivo desse setor serve de indicação, esse desafio romântico não se limita apenas aos adolescentes – muitas pessoas mais velhas e supostamente mais sábias também são atraídas pela promessa de obediência incondicional.
A questão, então, não é apenas como proteger as crianças da influência sedutora da IA, mas até que ponto estamos dispostos a investir, emocional e culturalmente, na arte desafiadora e profundamente humana que é o amor.
*Anna Mae Duane é professora de Inglês na Universidade de Connecticut
**Este texto foi publicado originalmente no site do The Conversation.
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