‘Até quando?’ ‘Você não vai viver longe de mim’, disse ex antes de matar a mulher na frente dos filhos de 2 e 5 anos


Série de reportagens do g1 conta hoje a história de Millena, que foi morta e teve o corpo colocado dentro de uma geladeira. Ex-marido não aceitava a separação e a matou 20 dias após o término. Até quando? Vítima de feminicídio acreditava que assassino mudaria o jeito agressivo
“Ela só tinha 22 anos. Tinha um sonho, um projeto. Ela queria viver, ter um futuro, seguir em frente”.
O desabafo é da autônoma Fabiana Garcia, mãe da Millena Vitoria Garcia, que foi morta em novembro de 2024 pelo ex-marido na frente dos 2 filhos, de 2 e 5 anos.
O corpo da jovem foi colocado dentro de uma geladeira, na casa em que ela estava morando sozinha com os filhos depois de se separar de Marcos Vinícius. A primeira pessoa a chegar na cena do crime foi o padrasto da moça, que a criava desde os 3 anos e a tinha como filha.
➡️Esse é um dos assuntos abordados na série especial do g1 “Até quando?”. As reportagens contam histórias de vítimas, o luto de suas famílias e os desdobramentos que as suas mortes ocasionam, como os órfãos do feminicídio.
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A família conta que o relacionamento do casal era conturbado, que começou quando a jovem tinha 16 anos. Em pouco tempo, eles foram morar juntos e tiveram o 1º filho. Mas, ao longo do tempo, a jovem passou a ser vítima de violência doméstica.
Antes de ser morta, ela chegou a compartilhar postagens sobre o assunto nas redes sociais, com fotos que diziam “Não foi só uma vez” em camisas ensanguentadas. O ex não aceitava a separação e a matou 20 dias após o término.
“Quando ela resolveu dar um basta, um ponto final, ele falou para ela: ‘Você não vive longe de mim! Se não for comigo, não vai ser com mais ninguém! Você não vai viver!’. Ele falou isso para ela 20 dias antes, quando ela ia sair de casa. Ele ameaçou e foi lá e cumpriu”, conta a mãe.
Marcos Vinícius se entregou à polícia horas após o crime. Ele responde por feminicídio e ocultação de cadáver.
“Sempre foi um relacionamento que a mãe sente quando não vai ter um futuro legal, mas ela insistiu no namoro. Foi um relacionamento muito conturbado, com ciúme, agressão física, psicológica, moral, todo tipo de agressão que possa uma mulher viver na presença de um homem ela passava. Sempre aconselhei: ‘Você tem que sair fora desse relacionamento, isso não é vida nem para você nem para as crianças’”, continua Fabiana.
Desabafo Fabiana Garcia
Millena acreditava que Marcos poderia mudar. Mesmo com as agressões, ela ainda tinha esperança de um casamento feliz. Mas, como o homem também estava sendo agressivo com as crianças, ela decidiu dar um basta na relação.
“Meu esposo fez a mudança dela todinha em cima do nosso carro. Trouxe geladeira, fogão, tudo em cima do carro. Ela estava feliz, o período em que ela estava com ele a gente não via um sorriso no rosto da minha filha. Ela estava alegre, feliz, queria fazer cursos, trabalhar, mesmo que fosse de bico, ela adorava a área da estética”, relata a mãe.
“A gente tinha esse projeto, ela ia trabalhar, e eu, ficar com as crianças. E ela ia estudar à noite. Ela tava alegre, crendo que ia ter uma vida nova”, diz Fabiana.
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Família soube do crime por telefone
Os dias que antecederam o crime foram de agonia para Millena. Ela foi morta em uma segunda-feira no início da manhã, mas desde sexta estava aflita pois o ex tinha pedido para levar o filho mais velho para ver a avó paterna. Horas depois, ele começou a enviar mensagens dizendo que ela nunca mais veria a criança, pois ele não devolveria o menino.
A família pretendia ir até a delegacia na segunda caso ele não retornasse com a criança, mas não deu tempo. Por volta das 7h, ele chegou na casa dela com o garoto. Ao abrir o portão para receber o filho, ela começou a ser agredida.
Os pais estranharam que Millena não atendia o telefone ao longo da manhã, mas relevaram porque ela não costumava acordar muito cedo. Além disso, tinham combinado de ir à delegacia no período da tarde.
Pouco depois, uma ligação mudou a vida dos pais da jovem.
“Por volta das 11h, mais ou menos, a irmã dele me ligou dizendo: ‘Tia, a senhora é a mãe da Millena?’. Eu falei: ‘Sou, por quê?’. Ela respondeu: ‘É porque o Marcos chegou aqui falando que matou a Milena. Ele trouxe as crianças para cá e falou que matou a sua filha. Vai lá, tia, vê isso’. Eu entrei em desespero”, relembra Fabiana.
A partir desse momento, Fabiana entrou em choque e não soube mais como reagir. Foi o pai da moça quem tomou as primeiras atitudes.
“Logo ela perdeu o chão. Estava no viva-voz. Sabe quando uma notícia chega e você não duvida de que foi aquilo que aconteceu? Eu senti que já estava diante da verdade quando aquela notícia chegou”, relembra Isaías de Assis.
Ele conta que desceu as escadas da sua casa correndo, que fica no 3º andar, e foi até a casa onde a moça estava morando. Isaías tentou gritar, na esperança de que alguém abrisse a porta e tudo não passasse de uma confusão. Sem resposta, ele pegou uma escada emprestada e pulou o muro.
A casa, que era pequena, não tinha janelas que permitissem ver os cômodos do lado de fora. “Seria um ponto ideal para emboscada, prejudicou até para a Millena pedir socorro”, define o pai.
Desabafo Isaías
“Eu fui entrando cômodo por cômodo, para ter certeza que não tinha mais ninguém, dando um passo de cada vez. Não queria tocar em nada para não deixar marcas porque era a primeira testemunha entrando no local. Quando chegou na cozinha, eu vi aquela geladeira deitada”, relembra ele.
“Essa geladeira fui eu que transportei de um outro bairro para cá, fui eu que coloquei no interior daquela casa e fui eu que liguei essa geladeira. Eu vi a menina colocar ali os primeiros alimentos. Quando eu olhei aquela geladeira deitada, eu falei :‘Minha filha tá aí dentro’”.
Antes de abrir a geladeira, ele terminou de procurar em outros cômodos para ter certeza de que não estava enganado.
“Eu voltei e tive que abrir aquela geladeira para ver a pior cena da minha vida. Quando eu abri a porta, o corpo da Millena estava lá”, conta.
Pedido de socorro
Mesmo em choque ao ver a filha ferida, Isaías pediu o telefone de um vizinho para ligar para a polícia. Ele conta que passou por 3 setores e teve que repetir tudo que tinha visto até que enviassem uma viatura.
Depois de ligar para a polícia, ele decidiu ligar para o Samu, na tentativa de que ainda houvesse a chance de reanimá-la. Novamente, ele passou por vários setores.
“Até que um disse que era necessário que eu entrasse para a casa e identificasse o que ele estava falando. Me deram as instruções, para eu beliscar, chamar, gritar, tocar em um membro e puxar. Quando eu disse que o braço já estava duro, ele disse: ‘Eu vou ter que te informar que tá em óbito, tá, pai? Tua filha já tá em óbito’. Eu sabia o que estava acontecendo, eu só achava que era um profissional que ia lá e identificar isso”.
Filhos traumatizados
Millena Vitória foi morta pelo ex-marido
Arquivo pessoal
Ainda no mesmo dia, depois e da perícia ser feita na casa, e o corpo ser encaminhado ao Instituto Médico-Legal, a família passou por mais um trauma. A irmã do assassino pediu que os avós buscassem as crianças na casa dela, em um bairro um pouco distante e perigoso.
Quando eles chegaram, o menino de 5 anos estava em estado de choque, paralisado e mudo. Depois de entrar no carro e ser incentivado pela avó a falar, ele revelou que viu todo o crime, desde as facadas, até a limpeza do sangue e a ocultação do cadáver.
A criança, sem entender o processo que estava vivendo, passou a madrugada sem conseguir dormir e repetindo incessantemente a cena presenciada, como conta a família.
No dia seguinte, o pai soube no IML que, pelo menos na região do rosto e pescoço, foram identificadas 25 facadas.
“Ele não sabe falar o número 25, mas ele estava falando quantas vezes ele viu aquela faca entrar e sair do corpo da mãe dele. E isso se estendeu pela madrugada inteira, de 30 em 30 minutos. O menino queria desabafar, e a gente não sabia o que fazer”, afirma o avô.
Ciclo da violência
A família conta que o ciclo da violência começou muito cedo no relacionamento, e que Marcos se apresentava agressivo com outras pessoas — até mesmo com a mãe.
Millena Vitória foi morta pelo ex-marido
Arquivo pessoal
Vários vizinhos levavam relatos para os pais, a fim de alertar a jovem do que poderia acontecer.
“Para mim, foi muito doloroso, não só agora no final. Foram desde os primeiros passos que vieram para chegar até o pé que chegou. Ela não foi criada com agressão. Nunca precisou dar palmada, muito menos da surra. Então, me doeu quando ela resolveu assumir um relacionamento que a gente discordou. Quando chegaram as primeiras notícias de agressão, xingamento, eu pensei: ‘Ela não teve isso de mim a vida toda e resolveu se aliar a um camarada que oferece isso a ela?’”, desabafa Isaías.
“Ela era infeliz, e isso era exposto, bem nítido, a gente não conseguia notar sorriso na cara da Millena hora nenhuma. Ela apareceu com uma marca no rosto, e eu perguntei o que era, ela disse que tinha sido briga, que ela partiu pra cima dele, e ele bateu com a mão nela. Então não foi um soco?”, questiona o pai.
O pai conta que tentou alertar a garota sobre as possíveis consequências da situação.
“Eu falei: ‘Minha filha, tu sabe que isso não vai melhorar, sabe? Não vai dar bom. Olha o jornal, é muita desgraça, muita violência, tem sempre uma menina bonitinha igual a você, mas é só a foto, porque ela não existe mais. Isso vai dar em coisa ruim, cara’”, conta ele.
Conselhos Fabiana
A resposta dela para o pai foi de que acreditava na mudança do homem. “Ela tinha um coração bom, ela carregava com ela a obrigação de entender que o lado bom das pessoas existe, e que a pessoa pode mudar a qualquer momento”.
Para a major Bianca Neves, coordenadora estadual do Programa Patrulha Maria da Penha, quando o ciclo da violência está instaurado, não é possível prever a hora em que uma agressão vai ocorrer.
“Na violência doméstica e familiar, a gente sabe quem é o autor, a gente sabe quem é a vítima, mas muitas das vezes a gente não sabe em que momento isso vai acontecer. Então, se é uma relação em que ele te xinga, grita com você, sai fora rápido”, destaca.
‘Não espere o pior acontecer’, alerta mãe
Em um alerta para mulheres vítimas de violência, Fabiana aconselha: “Não deixe chegar a esse ponto”.
Depois do divórcio, Millena não procurou a polícia para relatar as ameaças e as violências sofridas enquanto estava com o ex.
“Não se cale não, só de ele gritar com você, ele já está te ferindo, porque quando ele grita, ele se sente no direito de te dar um empurrão. Depois do empurrão que você acha que não foi nada, é um tapa. Depois o soco, depois passa para agressão até passar para a morte. Ele não vai mudar”, diz.
“Não fica esperando o pior acontecer achando que vai ter uma mudança. Não aceite agressão de forma nenhuma, nem o primeiro grito, nem te privar das coisas”, aconselha.
Millena Vitória foi morta pelo ex-marido
Arquivo pessoal
“Minha filha conseguiu colocar um ponto final. Estava feliz, alegre, com vontade de viver mais do que nunca pelos filhos. Meu conselho é que essas meninas conversem com as mães. A mãe quer sempre o bem, ouçam mais as pessoas mais velhas, peçam socorro”, completa.
Onde pedir ajuda em caso de violência doméstica
190 – para acionar a Polícia Militar em casos de emergência
180 -para acionar a Rede de Atendimento à Mulher em situação de violência
100 – para denúncias de violação de Direitos Humanos
Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam): para registrar boletins de ocorrência, solicitar medidas protetivas e pedir exames de corpo delito
WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008
Unidades do Ministério Público para se informar e pedir ajuda na solicitação de medidas protetivas
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