Além do 29 de abril: professora levou flores para o protesto e voltou para casa com restos de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha


Mais de 200 pessoas ficaram feridas após o confronto. Dez anos depois, manifestantes contam ao g1 como episódio mudou suas vidas. Além do 29 de abril: professora levou flores para o protesto e voltou para casa com restos de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha
Enquanto se preparava para participar dos protestos que aconteceriam no dia 29 de abril de 2015, a professora de Biologia Vera Márcia Mortean colheu algumas rosas plantadas no próprio quintal. Ela queria levar as flores para a manifestação dos servidores públicos na Praça Nossa Senhora da Salete. Naquele dia, as rosas se perderam em meio ao confronto que explodiu na praça. E Vera voltou para casa com pedaços de bombas de gás lacrimogêneo e cápsulas de balas de borracha, que foram disparadas pela polícia contra os manifestantes. Mais de 200 pessoas ficaram feridas na data.
➡️ Este é a segunda reportagem especial da série “Além do 29 de abril”, do g1 Paraná, que trata sobre a repercussão da “Operação Centro Cívico”. Você pode acessar os outros textos aqui.
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Para Vera, guardar os itens é uma forma de preservar a memória do sentimento de injustiça que a professora presenciou, ao lado dos colegas .
“Cada objeto que eu fui recolhendo, eu ia sentindo a agressão ao meu semelhante, ao meu par. Você sente uma dor que não é física, é emocional”, lembra.
Professora Vera guardou por dez anos os restos de arsenais usados no 29 de abril de 2015
Matheus Karam/g1
Durante dez anos, os itens que ela recolheu ficaram guardados em um canto da casa onde mora, em Curitiba.
Ao retirá-los do local para mostrar à equipe do g1, um filme passou pela cabeça dela: lembrou das imagens dos colegas feridos, das dificuldades enfrentadas dentro da sala de aula e também da coragem para enfrentar os desafios.
As agressões sofridas no 29 de abril de 2015 não foram suficientes para fazer com que ela desistisse da educação. Aos 63 anos, ela segue dando aulas.
“Hoje é mais difícil o trabalho dentro de sala de aula, mas eu não posso deixar de tentar produzir um aluno crítico, um cidadão que, mais para frente, possa fazer diferença na sociedade”, defende.
Pedaço de bomba de gás lacrimogêneo jogada contra manifestantes em 29 de abril de 2015
Matheus Karam/g1
As primeiras rosas
Naquele dia, dez anos atrás, imagens da professora agitada, com um buquê de rosas nas mãos, gritando palavras de ordem em frente a um mar de agentes policiais foram destacadas em alguns noticiários. Refletindo sobre o que viveu, ela acredita que a cena evidencia a diferença de forças entre os lados.
“Foram as primeiras rosas que nasceram na casa onde eu estava morando, sabia? Eu juntei aquelas rosas e levei para lá, mas nada foi organizado antecipadamente, tudo aconteceu espontaneamente”, conta.
Professora Vera com um buquê de flores em frente a um mar de policiais
RPC
‘Não faz sentido, eu não ofereço risco’
Também naquele dia, o psicólogo e policial penal Cláudio Marcio Antunes Franco acompanhava a concentração de servidores desde cedo, vestindo uma camiseta do Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná (Deppen), onde trabalha.
Por também ser funcionário público estadual, a votação dos projetos de lei que previam cortes em benefícios e mudanças na previdência do funcionalismo o afetava diretamente. De acordo com Cláudio, o clima até então era de otimismo e apreensão, mas não havia expectativa de um confronto violento.
No entanto, em determinado momento, começou a ouvir barulhos de tiros, viu bombas sendo lançadas e a correria dos outros manifestantes. A reação policial foi uma surpresa para ele.
“Particularmente, eu jamais pensei que o estado fosse usar um aparato de força que a Segurança não usa nem mesmo contra traficantes ou ladrões de banco, – que são pessoas bem armadas – contra mulheres e homens que sabidamente têm caráter moral e ilibado”.
“Para você entrar no serviço público, você precisa apresentar as certidões de idoneidade moral para assumir o cargo. Você apresenta certidões de que não deve nada para a Justiça em nenhuma esfera, que é uma pessoa que paga suas contas em dia. Você tem que apresentar, ou então é eliminado do concurso. O governo conhecia o público com quem estava lidando. Sabia que aquele público não oferecia risco”, afirma.
Foto do psicólogo e policial penal Cláudio Marcio Antunes Franco ferido rodou o mundo
Mariah Colombo/g1
Após ajudar uma idosa que havia caído na confusão, Cláudio viu policiais se aproximando. De acordo com ele, por estar identificado com a camiseta do Deppen, acreditou que os colegas de profissão não iriam encará-lo como uma ameaça.
“Nós éramos da mesma Secretaria de Segurança Pública, então pensei: ‘Não faz sentido, eu não ofereço risco’. E aí eu só senti o barulho do estampido, meu corpo rodou e fiquei com aquele barulho no ouvido”, lembra.
Três tiros atingiram o rosto de Cláudio. Uma foto dele ferido percorreu o mundo e se tornou símbolo da “Operação Centro Cívico”, como o Governo do Estado se referiu ao evento à época.
Enquanto a foto repercutia nos veículos de imprensa, ele ainda não havia percebido que estava machucado. Cláudio ajudava colegas feridos quando recebeu uma ligação do filho, que viu a foto do pai publicada no g1.
O impacto dos tiros resultou na quebra de dois dentes e na necessidade de um procedimento estético para amenizar a marca deixada na bochecha.
Hoje, ele ainda carrega uma cicatriz discreta no local, que o ajuda a se lembrar da importância de defender o que acredita ser certo e contar uma história, que ele espera que não se repita.
Eu acho que, de certa forma, esse episódio me posicionou na vida para algumas questões de maneira mais responsável, mais crítica, mais inteligente, mais madura. As cicatrizes das batalhas que você luta também definem quem você é e para onde você vai
‘Não sabia como iam me receber’
Manifestante ferido com bala de borracha em confronto em Curitiba
Giuliano Gomes/PR Press
Passado o frenesi do confronto, a preocupação de Cláudio deixou de ser em socorrer os feridos e passou a ser a própria família. O medo era de como ele seria recebido e o que pensariam dele.
“Eu não sabia como eles iam me receber, porque o governador, o poder de autoridade máxima do estado, estava dizendo que eu era um dos vagabundos, dos black blocs. Eu fiquei mais com medo da reação dos meus amados. Eles não me aceitarem seria, para mim, uma morte emocional”.
“Quando você morre na afetividade dos que você ama, você é um morto-vivo, você é um zumbi. Minha preocupação era essa: como é que meus filhos vão me olhar, como minha esposa vai me olhar?”, compartilha.
Cláudio Marcio Antunes Franco retorna à Praça Nossa Senhora da Salete, onde foi baleado no rosto
Mariah Colombo/g1
Desilusão com a criminalização dos manifestantes
Assim como para Cláudio, a frustração pela forma como autoridades se referiram aos manifestantes é notável na fala daqueles que participaram do episódio.
Na época, o Governo do Paraná atribuiu a responsabilidade pela escalada do conflito a “black blocs” e pessoas “estranhas ao movimento dos servidores estaduais”. Um inquérito apurou a participação desses supostos grupos, mas a investigação foi arquivada pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) sem identificar nenhum suspeito.
Para o professor Sebastião Donizete Santarosa, as consequências das falas que criminalizavam os manifestantes, especialmente os educadores, são sentidas até hoje dentro das escolas.
“Aquilo que aconteceu no 29 de abril vem acontecendo em micro-universos de sala de aula. Aquela violência toda contra professores acontece no dia a dia na sala de aula, com agressão de alunos, com agressão de pais, com a agressão dos meios de comunicação, com a agressão das autoridades. Isso é velado. O que aconteceu no dia 29 de abril, o que a polícia fez contra nós, isso se repete. Isso se reproduz”, desabafa.
O impacto disso, na avaliação do professor, é o adoecimento dos educadores e um desencantamento da classe com a profissão.
Hoje, no Paraná, 47.022 educadores compõem o quadro próprio do magistério da Secretaria de Estado da Educação (Seed). São 22.110 educadores a menos do que em abril de 2015.
Conforme a secretaria, a razão para a queda é a ausência de concursos públicos desde 2013, mas também perdas naturais, como óbitos, aposentadorias e exonerações, que diminuem o corpo docente.
Além da baixa no número de professores vinculados à rede estadual, o interesse por cursos de licenciatura caiu 74% nos últimos anos, por conta dos baixos salários e das condições de trabalho.

Desgaste psicológico na educação
A defasagem salarial, o acúmulo de funções, a carga horária extensa e a violência dentro de sala de aula são os principais fatores que causam o adoecimento dos docentes do Paraná, de acordo com o professor e pesquisador da educação Everton Grison. Ele estudou o impacto psicológico dos desafios da profissão.
Para o pesquisador, o 29 de abril foi um marco cultural, histórico e subjetivo que gera consequências nos profissionais mesmo dez anos depois da “Operação Centro Cívico”.
Com o desgaste mental, muitos profissionais deixaram ou planejam deixar a profissão. Durante um levantamento realizado pelo pesquisador, professores relataram que apresentam sintomas de depressão, Síndrome de Burnout, agitação, insônia, além de desespero antes de voltar à sala de aula.
Outro fator que leva ao desgaste emocional dos educadores pode estar ligado, conforme Grison, ao uso de plataformas online – inicialmente introduzidas para auxiliar no ensino dos estudantes.
“O processo de plataformização tem gerado um desgaste significativo nos estudantes e nos docentes, porque essa necessidade de produção de dados acaba por se perder o processo de aprendizagem em função de cumprir metas e atingir certos objetivos que não estão claramente identificados ou não estão relacionados com a aprendizagem”, detalha Everton.
Conforme o pesquisador, no contexto atual, a figura do professor também é impactada por um abandono social.
“Em muitas situações, nós [professores] somos vistos como aqueles que não tiveram competência para ocupar algo melhor e por isso foram para essa área da educação, como se a gente não fosse suficientemente capacitado”, explica.
Saúde mental em pauta
No Paraná, a Lei nº 14.992, sancionada em 2006, prevê a criação do Programa Estadual de Saúde Mental Preventiva, direcionado para professores da rede pública estadual com o objetivo de prevenção do adoecimento dos docentes. No entanto, o programa nunca foi criado.
No estado, o projeto Bem Cuidar oferece atendimento psicológico e psiquiátrico para servidores da rede estadual por meio de uma plataforma de teleconsultas. Entre 2022 e 2024, o programa atendeu 7.621 servidores, segundo a Secretaria da Educação.
Porém, a delicadeza do assunto exige mais do que isso, conforme Grison.
“Um aplicativo de marcação de consultas não é representação de política pública. Política pública exige bem mais do que isso. Exige esforço político, exige legislação de amparo e organização e esforço, vontade política para fazê-lo”, defende.
Como forma de preencher o vazio causado pela ausência de políticas públicas voltadas para o tema, em 2019 educadores passaram a criar comissões de saúde nas escolas estaduais, com o objetivo de mapear o desgaste mental entre os professores e trabalhar o cuidado com a saúde mental.
A ação, realizada em mais de 100 colégios do Paraná, estudava a condição de trabalho dos profissionais, além de fazer a análise das circunstâncias efetivas do ambiente em que os docentes atuavam. As comissões apontavam as situações que colocavam a saúde do trabalhador em risco, por meio dos relatos dos professores.
Para falar sobre os problemas apontados pelo pesquisador e pelos professores, o g1 tentou agendar uma entrevista com a Secretaria de Educação da atual gestão do Governo Estadual. O pedido de entrevista foi negado.
*Com colaboração de Matheus Karam, estagiário do g1 Paraná, com supervisão de Mariah Colombo.
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