Com estudo sobre violência contra travestis, atriz é a 1ª aluna trans a concluir mestrado no Acre


Kika Sena defendeu a dissertação de mestrado na última quarta-feira (20) e foi aprovada após uma performance artística com versos e poesias. Estudo é inspirado na peça teatral “Ovelha Dolly”, encenada pela atriz no Acre em 2021. Kika Sena se tornou a primeira mulher trans a passar no mestrado na Ufac na última quarta-feira (20)
Arquivo pessoal
Artista, atriz premiada em diversos festivais de cinema do Brasil e do mundo, preta, mulher trans e agora primeira aluna trans da Universidade Federal do Acre (Ufac), em Rio Branco, a concluir o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC). Essa é Kika Sena, que defendeu a dissertação na última quarta-feira (20) e foi aprovada após uma performance artística.
Com a aprovação, Kika se tornou a primeira mulher trans mestre da Ufac. “Acho muito importante esse lugar de abrir portas, de ocupar espaços, mas fico triste, também, em ser a primeira, ao mesmo tempo. A gente está no século XXI, ano de 2023, e na Universidade Federal do Acre eu sou a primeira a ser mestre. Isso é um problema. No Rio de Janeiro fui a primeira travesti a ganhar o festival do Rio, outro problema, então, é legal ocupar esse espaço de ser a primeira, mas faz a gente refletir o porquê isso está acontecendo só agora”, questionou.
O título da dissertação de Kika foi: “Béééééééé! A voz como recurso poético e político na performance de uma travesti preta e periférica”. O estudo é inspirado na peça teatral Ovelha Dolly, de Fernando de Carvalho, encenada por Kika em 2021 na Usina de Artes da capital acreana.
A peça tem a ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado no mundo e abatido seis anos depois por cientistas, como personagem principal. No espetáculo, Dolly questiona e faz críticas de como a religião, a ciência e a arte abusam do poder e determinam o que é correto e validado na sociedade.
Inspirada no discurso da peça, Kika escreveu a dissertação voltada para a violência e opressão que as travestis são submetidas e a luta para ocupar espaços de fala e destaque na sociedade.
Conquista de Kika foi celebrada por outras mulheres trans que acompanharam a apresentação
Arquivo pessoal
“Levei do palco para a universidade. O estudo que fiz foi específico da minha relação e da minha construção com essa personagem. Eu sinalizo que é uma personagem que sai de um espetáculo, há referência do espetáculo, mas na minha pesquisa falo, especificamente, sobre os caminhos que tomei para chegar à personagem, como ela me afeta”, destacou.
A peça Ovelha Dolly foi apresentada em Rio Branco em 2021 na Usina de Artes. Na época, Kika tinha acabado de ingressar no mestrado, mas já fazia pesquisas sobre o discurso do espetáculo e o relacionava com as dificuldades que uma mulher preta, da periferia e trans sofre desde 2020.
A atriz destaca que, em alguns momentos da pesquisa, ela e Dolly se misturam de uma forma tão completa que não sabem quem é quem. “A ovelha Dolly me traz esse lugar de espelho social das travestis gritando, errando e ecoando a violência sofrida por elas. A Dolly foi o primeiro mamífero clonado e o Fernando de Carvalho, autor da peça, pega a personagem e traz esse discurso de quais corpos são assassinados e violentados. Ela vira uma representação de tudo que é violência. Eu, junto com a Sarah, fizemos uma releitura inserindo essa personagem no contexto da travestilidade, que é de onde me localizo socialmente”, complementa.
Kika Sena é a primeira mulher trans a concluir o mestrado na Ufac
Globo/Manoella Mello
Apresentação
A defesa da tese de Kika ocorreu em Rio Branco e foi assistida pela internet pela professora e pesquisadora trans, Letícia Carolina Nascimento, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), autora do livro Transfeminismo.
“A apresentação foi linda, fiquei surpresa, a recepção dos professores da banca foi maravilhosa, a gente não tem nota, aprovam ou não aprovam. Fiquei feliz com o feedback, senti que meu trabalho estava fechado, recebi indicações para seguir com doutorado. Foi muito positivo”, celebrou.
Assistiram ainda a apresentação as acadêmicas e amigas de Kika: Brenn Souza, Bia Berkman, Morgana Café e Aisha Patuá, além da esposa de Kika, Sarah Bicha, e parte do elenco da peça.
A banca foi composta pelos professores da Ufac: Adelice dos Santos Souza, que é presidente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), Humberto Issao Sueyoshi e Letícia Carolina Pereira do Nascimento, da UFPI.
“Estávamos com um público legal, algumas travestis ocupando aquele espaço, dando suporte e foi muito bom vê-las enquanto estava celebrando esse momento”, concluiu.
Atriz premiada
Kika Sena é natural de Marechal Deodoro, em Alagoas, filha de mãe solteira e semianalfabeta, e foi a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Se mudou para Brasília para fazer o ensino médio aos 15 anos e ficou com a família de um tio.
O amor pelo cinema e a arte começou no período escolar de Kika Sena. Ela participou de um grupo de teatro do colégio, se apaixonou e decidiu ser atriz quando terminasse a escola. Com a paixão pelo teatro, decidiu cursar artes cênicas na Universidade de Brasília, onde se formou em 2018.
Foi nesse ano que surgiu o teste para encontrar uma atriz trans para o filme Paloma, do diretor Marcelo Gomes. Kika fez o teste e ganhou o papel principal. O longa conta a história de uma mulher trans que trabalha como agricultora no sertão de Pernambuco e sonha em casar na igreja, mas é impedida pelo padre. Persistente, Paloma vai em busca do seu sonho.
Kika Sena viveu Kátia, mulher trans que vive com Lena, uma mulher cis
Reprodução
O filme estreou no cinema em 2022. A produção cinematográfica ganhou diversos prêmios internacionais e nacionais, entre eles o de melhor longa da mostra competitiva Première Brasil do Festival do Rio de 2022, prêmio Félix de melhor filme brasileiro, categoria que enaltece as produções de temáticas LGBTQIAPN+, entre outros.
Kika recebeu ainda o troféu redentor de melhor atriz no Festival do Rio pelo personagem. Em 2019, foi convidada pelo diretor Sérgio de Carvalho para vir ao Acre participar da produção Noites Alienígenas. Foi no Acre que se apaixonou e casou com a diretora Sarah Bicha e, do relacionamento, nasceu um menino.
Atualmente, ela mora no Acre com a família. Em junho deste ano, Kika protagonizou o 3⁰ episódio da série Histórias Impossíveis do especial Falas de Orgulho do Globoplay. O episódio Sísmica’ foi exibido na Tela Quente no mês do Orgulho LGBTQIAPN+.
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