Calouros ajoelhados, chapéu de palha e data em referência à escravidão: entenda significados por trás de trotes universitários


Prática foi flagrada na USP de Piracicaba nesta semana. Professor especialista no tema comenta as simbologias que permeiam a relação hierárquica entre veteranos e calouros. Alunos deitados de bruços com na USP de Piracicaba: associação denuncia trote
Reprodução/ Adusp
Estudantes foram flagrados de bruços e ajoelhados durante trote, nesta semana, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), em Piracicaba (SP). A situação fez entidades cobrarem medidas da universidade, que diz que não recebeu denúncias e que promoveu diálogo com estudantes.
As imagens do trote foram captadas na última segunda-feira (5), em frente ao Prédio Central da Esalq, e denunciadas por alunos e professores à Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp). A entidade afirma que um vídeo mostra a guarda universitária próxima ao local, e um narrador diz que pessoas foram agredidas. O vídeo não foi divulgado para preservação de identidades.
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Especialista no tema, o professor titular Antonio Ribeiro de Almeida Jr., do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq, detalhou ao g1 as simbologias por trás da relação hierárquica e violenta presente nos trotes. Entenda a seguir:
Se ajoelhar diante do veterano
O docente observa que se ajoelhar diante de uma outra pessoa é um sinal de submissão.
“É o vassalo que se ajoelha diante do rei. É um sinal nítido de submissão. Além disso, essas pessoas ficam tanto tempo ajoelhadas que, às vezes, os joelhos delas ficam roxos. Você ajoelhar já é uma coisa ruim. Agora, você ajoelhar no assalto é um pouco pior”, conta.
Uso de chapéu de palha
Segundo Almeida Jr., o chapéu de palha coloca o aluno de primeiro ano na condição do trabalhador braçal da agricultura, setor no qual a Esalq é referência.
“Ou seja, aquele que é bixo, que não é nada, que é um zero à esquerda, que é o aluno do primeiro ano, é colocado na condição do trabalhador braçal. Pra mim, isso é uma coisa nitidamente de preconceito de classe”.
Carregamento de troncos
De acordo com o professor, os calouros também são coagidos a segurarem objetos pesados, como troncos de árvores, outra referência ao trabalho braçal na agricultura. “Por exemplo, carregam um pedaço de tronco durante o dia inteiro e coisas desse tipo”.
Estudantes ajoelhadas em campus da Esalq: manifesto afirma que há omissão da universidade diante de trotes
Reprodução/ Adusp
Uso de apelidos
O chapéu também porta o apelido do aluno. “O aluno é renomeado e muitas vezes recebe apelidos através do chapéu, que são apelidos no mínimo indesejáveis, com nomes fazendo todo tipo de zombaria contra esse aluno”, explica o docente.
‘Libertação’ no Dia da Abolição da Escravatura
Almeida Jr. também chama a atenção para o fato dos estudantes ingressantes serem considerados “libertados” exatamente no dia 13 de maio, data da abolição da escravatura no Brasil.
“Os ‘bixos’, aqueles que não são humanos, são libertados exatamente na mesma semana, na mesma data que é a data de libertação dos escravos no Brasil. Quer dizer, tudo isso é uma brincadeira? É uma coisinha sem importância? Não. Isso daí reflete muito bem os valores que estão colocados”, alerta.
Professor e entidades cobram ações da Esalq
Nos casos ocorridos na Esalq/USP, para Almeida Jr., há omissão da universidade.
“Aquelas cenas [flagradas e divulgadas pela Adusp] estão acontecendo em frente ao prédio central da Esalq, onde fica a diretoria da Esalq e onde fica a prefeitura da Esalq. A lei mais recente [contra trotes] coloca explicitamente a questão da negligência. E está acontecendo ali, não só diante do olhar do prefeito e da diretora da Esalq, mas também diante do olhar da reitoria da Esalq”, afirma.
A cobrança também é feita pela Adusp e outras entidades que publicaram um manifesto, nesta semana, chamado “Manifesto Público à Universidade de São Paulo: até quando a USP será conivente com a ‘tradição’?”.
Campus da Esalq/USP, em Piracicaba
Bruno Leoni/g1
O que diz a Esalq
Em nota ao g1, a Esalq/USP informou que tomou conhecimento da movimentação de estudantes, sem, no entanto, ter recebido denúncias formais relacionadas à prática de trote ou qualquer tipo de violência. E que a Guarda Universitária, cuja atuação tem caráter primordialmente patrimonial, “mantém-se atenta a essas ocorrências, deslocando-se sempre que necessário para apuração e registro dos fatos”.
A universidade acrescentou adota, de forma preventiva, uma série de medidas para coibir o trote. E que planejamento tem início no ano anterior ao ingresso dos calouros, com ações organizadas pela Comissão de Recepção ao Ingressante.
Essa comissão, segundo a instituição, é composta por representantes da Comissão de Graduação, coordenações de curso, serviço social e Comissão de Inclusão e Pertencimento, entre outros. O grupo é responsável por preparar campanhas educativas e materiais de conscientização que reforçam a proibição do trote, conforme estabelece a legislação estadual vigente.
“Desde 2023, não foram registradas denúncias via Disque Trote. Ainda assim, a Esalq reforça que é fundamental que toda ocorrência seja devidamente registrada por meio dos canais oficiais, permitindo a apuração e a adoção das providências cabíveis. Alunos envolvidos em casos confirmados são notificados sobre a infração disciplinar, que é registrada em seus históricos acadêmicos. Em caso de reincidência, a penalidade pode ser agravada, resultando em suspensão ou até desligamento do estudante, conforme o Regimento Disciplinar da Universidade”, acrescentou.
A universidade ainda informou que, após o episódio relatado no dia 5 de maio de 2025, a Diretoria da Esalq convocou a Presidência do Conselho de Repúblicas para um diálogo sobre a proibição do trote e do assédio moral, destacando o vínculo entre essas práticas.
“No dia 8 de maio, a diretora da unidade, professora Thais Vieira, esteve presente em reunião no Centro Acadêmico, com a participação de aproximadamente 80 estudantes, ocasião em que reforçou o posicionamento institucional contra o trote e qualquer forma de assédio ou conduta inadequada no ambiente universitário”, comunicou.
A instituição concluiu que “reafirma seu compromisso com a promoção de um ambiente acadêmico seguro, respeitoso e acolhedor para todos os seus estudantes”.
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