O verdadeiro responsável pela crise do Pix

Nuno Vasconcellos comenta a crise do PixDivulgação O Dia

É impossível entender a crise da semana passada em torno do PIX, o programa eletrônico de transferência de fundos que funciona desde 2020 no Brasil e é considerada a maior inovação do sistema financeiro mundial neste século, sem identificar o grande causador da confusão. Não! Quem gerou o abalo não foi o jovem deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que, com a publicação de um vídeo despretensioso nas redes sociais, forçou o alto escalão do governo a recuar de uma medida essencialmente técnica. A culpa foi do hábito de um dos mais importantes órgãos da administração pública, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de tomar decisões sem medir as consequências.

Antes de prosseguir, um aviso: já passou da hora da equipe do presidente Luíz Inácio Lula da Silva rever sua reação habitual às críticas que recebe. Tentar reduzir as manifestações da oposição a fake news ou à ação deliberada da “extrema direita” para tentar conter os “avanços sociais” perseguidos pelo governo não ajudará o Planalto a recuperar a popularidade perdida. Popularidade que, por sinal, perde pontos preciosos na medida em que o governo dá à Receita Federal poderes absolutos para apertar o torniquete fiscal em torno do pescoço da sociedade para, com isso, sustentar uma máquina estatal inchada, ineficiente e incapaz de proporcionar ao povo um serviço à altura do que custa.

Jogo duro

A Receita é uma ilha de eficiência no oceano de inoperância do serviço público nacional. Com uma equipe qualificada, bem paga e selecionada em concursos públicos rigorosos, é equipada com o que há de mais avançado em termos de tecnologia da informação. Por tudo isso está, sem favor algum, no ponto mais alto da elite das instituições do Estado brasileiro.

Aliás, se o conjunto do serviço público tivesse a mesma eficiência, á máquina estatal seria mais produtiva e a Receita, talvez não precisasse de tanto rigor para tirar mais dinheiro do contribuinte. No entanto, a necessidade crescente de recursos por parte do governo — sem que isso se traduza na melhoria do sistema público de saúde, educação e segurança — deu à Receita poderes praticamente ilimitados. O problema é que a sociedade, pelo que se na semana passada, não está mais disposta a aceitar essa situação sem reagir.

Nos últimos anos, a Receita tem endurecido o jogo contra quem burla o fisco. Até aí, tudo bem: perseguir sonegadores ajuda a aliviar a conta para o cidadão. O problema é que, a pretexto de conter a evasão fiscal, o órgão acaba indo atrás de contribuintes honestos.

Todo santo dia, o cidadão é surpreendido por uma Instrução Normativa, uma Portaria, uma Nota Técnica ou qualquer outra decisão que endurece suas obrigações fiscais. A impressão que se tem é a de que, aos olhos da Secretaria, todo contribuinte é um sonegador em potencial, que precisa ficar o tempo todo provando sua honestidade e suas boas intenções… Isso consome energia e acaba irritando o contribuinte.

Causa da indignação

 É essa irritação que, no final das contas, ajuda a explicar a reação do contribuinte ao vídeo de Nikolas Ferreira. O deputado se referia à Instrução Normativa 2219, baixada em setembro de 2024 com o objetivo de atualizar os procedimentos de monitoramento das movimentações financeiras existentes no Brasil há quase duas décadas. E, também, determinar as obrigações dos bancos, dos fundos de pensão, dos fundos de investimento e das seguradoras, que devem informar ao fisco sobre o dinheiro que seus clientes movimentam.

A Instrução era um cartapácio com 32 artigos, distribuídos por sete capítulos. O texto era repleto de remissões a outros documentos, revogações de medidas anteriores e menções a procedimentos que mesmo um especialista em direito fiscal e tributário teria dificuldades de acompanhar. Lá pelas tantas, o documento determinava que as instituições financeiras são obrigadas a prestar informações sobre “transações eletrônicas efetuadas por intermédio do Sistema de Pagamentos Instantâneos” do Banco Central quando “o montante global movimentado no mês” for superior a R$ 5.000 para pessoas físicas ou R$ 15.000 para pessoas jurídicas. Como já ficou mais do que claro desde que a confusão começou, o texto em nenhum momento falava em tributar essas movimentações.

O certo é que nunca antes na história deste país um documento essencialmente técnico baixado pela Receita causou tanta confusão. E a causa da indignação, por mais que o governo e a imprensa aliada insistam em dizer isso, não foi provocada por fake news disseminadas a partir do vídeo de Nikolas Ferreira. A causa do bafafá foi a falta de credibilidade do governo ao jurar que não pretende aumentar impostos.

Apetite fiscal

O que ministro da Fazenda Fernando Haddad, o secretário da Receita Robinson Barreirinhas e o advogado geral da União Jorge Messias deveriam saber é que a sociedade está cansada de pagar impostos sem ver o esforço se reverter em seu benefício. E que as empresas e os cidadãos atingiram o limite da capacidade contributiva. Na entrevista da quarta-feira passada, em que anunciaram a revogação da Instrução Normativa 2219, todos eles lançaram ameaças sobre os disseminadores de fake news e os golpistas que tentaram se aproveitar da confusão para arrancar dinheiro de cidadãos desavisados. Trataram o cidadão como um idiota, capaz de acreditar na primeira lorota que alguém venha espalhar contra o governo, sem considerar que todo brasileiro tem motivos de sobra para desconfiar do apetite fiscal da Receita!

Em tempo! No calor da confusão, houve espertalhões que tentaram se aproveitar da situação para aplicar golpes em desavisados. Muita gente recebeu, conforme denunciou o ministro Haddad, boletos com a logomarca da Receita Federal fazendo cobranças indevidas sobre a tributação do PIX. Tudo bem: as tentativas de golpe existiram e são revoltantes. Mas, convenhamos, elas não foram inauguradas nesse episódio.

Há muito tempo, contribuintes recebem pelo correio ou pela internet boletos fajutos que parecem emitidos pela Receita. Mas que, na verdade, são forjados por golpistas. Por que a Receita não usa seu poder de fiscalização para ir atrás desses larápios ao invés de tratar os milhões de cidadãos que compartilharam o vídeo de Nikolas como inimigos?

Outra pergunta: como é que os criminosos têm acesso aos dados fiscais do contribuinte que, a rigor, deveriam estar protegidos, sob a guarda da Receita? Ora… os bandidos só têm acesso ao endereço e ao CPF das pessoas que tentam lesar porque alguém, de dentro da máquina, os ajudou a obtê-las. O governo, em crise de popularidade, ganharia muito mais pontos se, ao invés de lançar ameaças contra a “extrema direita”, agisse com rigor contra os funcionários públicos que repassam aos criminosos os dados que deveriam estar a salvo sob a guarda da Receita, do INSS ou de qualquer órgão oficial.

Fagulha no palheiro

O governo precisa admitir que o cidadão chegou ao limite da capacidade contributiva e que o equilíbrio fiscal sustentável só será alcançado com a redução das despesas públicas correntes. E que a sociedade deu, no episódio da semana passada, sinais claros de que, de agora em diante, rejeitará toda e qualquer medida destinada a aumentar a carga tributária que, com ou sem a reforma dos impostos sobre o consumo sancionada pelo presidente Lula na quinta-feira passada, é e continuará sendo uma das mais escorchantes do mundo.

Foi essa possibilidade — ou seja, a de ver o governo avançar um pouco mais sobre as finanças do cidadão — que levou a sociedade a se insurgir contra a mera hipótese de taxação das movimentações com o PIX. Não houve má fé por parte da Receita, que apenas jogou o jogo a que está habituada. Também não houve oportunismo por parte de Nikolas, que se limitou a cumprir seu papel de oposicionista. O que houve foi uma fagulha que ateou fogo num palheiro que já estava pronto para arder em chamas.

Um detalhe: ninguém consegue espalhar um boato de grandes proporções se não houver um clima que estimule as pessoas a acreditarem na mentira. Em maio de 2006, num momento de inoperância das forças de segurança contra o crime organizado, por exemplo, a população paulistana viveu uma noite de pânico causada por notícias falsas.

Ameaças espalhadas pela incipiente internet da época prometiam ataques terroristas em massa e as pessoas, amedrontadas, se trancaram em casa com medo da ação dos bandidos. Se a população confiasse na polícia, a ameaça cairia no vazio e ninguém reagiria aos boatos. Como a confiança não existia, o boato se espalhou e a fake news dos ataques do PCC, para deleite da oposição da época, foram tomados como ameaça real.

É bom recordar essa história para dizer o seguinte: o vídeo de Nikolas Ferreira passaria despercebido se a população não se sentisse sob ameaça permanente da gula fiscal do governo. Se o Planalto demonstrasse a mínima disposição para conter os gastos de custeio de forma efetiva, a oposição poderia falar o que quisesse que não causaria o mínimo estrago. Como, ao contrário disso, o Planalto faz tudo que pode para cobrar da população o custo da ineficiência da máquina pública, qualquer suspeita em relação ao apetite fiscal do governo será considerada verdadeira.

Se o governo quer mesmo recuperar a popularidade, o primeiro passo é entender que qualquer tentativa de tirar mais dinheiro da sociedade se voltará contra ele e poderá gerar abalos ainda mais graves do que a da semana passada. O Planalto, precisa, por exemplo, conter os aliados e evitar que ideias anacrônicas, como a apresentada na semana passada pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho, sejam levadas adiante sem um desmentido.

Nas segunda-feira, antes que a crise do PIX atingisse o ponto culminante, o jornal O Globo publicou uma entrevista em que Marinho insiste na ideia de ressuscitar o imposto sindical. Segundo o ministro, para evitar desgastes, um projeto com esse objetivo não seria apresentado diretamente pelo governo, mas por algum deputado aliado. Não é preciso ser um gênio da comunicação para saber que a inciativa será mal-recebida.

Por mais habilidade que o novo ministro da Comunicação Sidônio Palmeira demonstre, ficará difícil convencer a população de que o Planalto nada tem a ver com isso. Se Lula quiser mesmo reaver a popularidade, deveria mandar Marinho recuar em público da ideia absurda. Do contrário, uma nova crise logo baterá à sua porta e a popularidade do governo mergulhará num abismo ainda mais profundo.

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