Minuta do golpe, Estado de Defesa, gabinete de crise, ações na Justiça: as tentativas golpistas enquadradas pela PGR

Segundo a Procuradoria-Geral da República, preparativos para o golpe de Estado envolveram propostas de ações na Justiça para contestar o resultado das eleições, uso de instrumentos como a Garantia da Lei e da Ordem, além de pareceres da AGU para obrigar autoridades a descumprir decisões do Supremo Tribunal Federal. A denúncia da Procuradoria-Geral da República sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022 revelou que a organização criminosa — liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro — lançou mão de uma série de instrumentos para alcançar a ruptura democrática e impedir a posse do governo legitimamente eleito.
Entre eles, está a interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição, que trata do funcionamento das Forças Armadas. O artigo é usado por defensores de uma intervenção militar, mas o Supremo Tribunal Federal já fixou que este trecho da Constituição não autoriza este tipo de procedimento.
Os instrumentos golpistas
Veja como esses recursos usados pela organização criminosa citada pela PGR se enquadravam nos planos do golpe de Estado.
Artigo 142 da Constituição
O que diz a denúncia: a PF apreendeu, com um auxiliar do general Braga Netto, um manuscrito batizado de Operação 142, que tinha como objetivo impedir a posse do presidente Lula, eleito em 2022. O nome faz referência a um artigo da Constituição interpretado indevidamente como um dispositivo que autorizaria uma intervenção militar no país.
O documento previa um conjunto de seis etapas para, segundo as apurações, “implementar a ruptura institucional após a derrota eleitoral” de Jair Bolsonaro (PL).
O que prevê a legislação: o artigo da Constituição afirma que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Em decisão de abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal afirmou que o trecho não autoriza qualquer tipo de intervenção militar constitucional. Na prática, definiu que a Constituição não autoriza o presidente da República recorrer às Forças Armadas contra o Congresso Nacional e o Supremo, e que também não concede aos militares a atribuição de moderadores de eventuais conflitos entre os Três Poderes.
PGR denuncia Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado
Operações de Garantia da Lei e da Ordem e Estado de Sítio
O que diz a denúncia: segundo o documento, em uma reunião em dezembro de 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro teria apresentado propostas de uso de instrumentos jurídicos para consolidar o golpe. Entre eles, a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e o Estado de Sítio. Eles seriam meios de reverter o resultado das eleições presidenciais, marcadas pela derrota do político do PL.
O que prevê a legislação: a GLO é uma operação é executada por militares (Exército, Marinha e Aeronáutica) a partir de ordem assinada pelo presidente da República. A Lei Complementar 97 estabelece que a GLO “ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
O procedimento não pode desrespeitar as regras de lei e a Constituição. Já o Estado de Sítio é um instrumento previsto na Constituição para situações de grave comoção, de repercussão nacional, quando outras medidas de combate à crise não foram eficazes. Também é usado no caso de guerra ou reação à agressão armada de outros países. O presidente pode decretar o Estado de Sítio, mas precisa pedir autorização do Congresso Nacional, já que a medida pode levar à restrição de direitos dos cidadãos. É uma medida temporária, que também pode ser suspensa pelo Poder Legislativo. Além disso, as autoridades respondem por irregularidades cometidas durante a medida.
Decreto para o Estado de Defesa – a ‘minuta do golpe’
O que diz a denúncia: de acordo com a PGR, há elementos que apontam que “foram concebidas minutas de atos de formalização de quebra da ordem constitucional”. Entre elas, uma para decretar o Estado de Defesa, a ser usado contra o TSE em meio à contestação do resultado das eleições presidenciais.
O que prevê a legislação: o Estado de Defesa é uma medida prevista na Constituição para combater situações de crise – quando é necessário “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. Cabe ao presidente decretar o Estado de Defesa, mas é necessária a aprovação do Congresso. Há a restrição de direitos; no entanto, a Constituição prevê que autoridades respondam por atos ilícitos durante a medida.
Gabinete de crise
O que diz a denúncia: os preparativos do plano previam um “gabinete de crise”, como resposta às mortes de autoridades como o presidente Lula e o ministro Alexandre de Moraes, que também estava sendo tramada pelo grupo. Este gabinete de crise seria comandado por militares, tendo como base jurídica uma lei de 2019 que trata da organização da estrutura do Poder Executivo.
O que prevê a legislação: a legislação de 2019, já superada por outra lei, trazia a estrutura da organização do governo federal, fixada para a gestão do presidente Jair Bolsonaro. A regra atribuía ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência a prevenção de ocorrência de crises, mas não há uma autorização expressa para o tipo de atuação prevista pela organização criminosa. A investigação demonstra, além disso, que os objetivos para a criação do Gabinete de Crise não estavam vinculados ao interesse público, o que pode apontar para o desvio de finalidade.
Ações na Justiça contra as eleições
O que diz a denúncia: nos termos da PGR, a estratégia da organização criminosa envolvia ações para estimular a desconfiança em relação ao sistema eleitoral, fortalecendo a narrativa de fraude nas urnas. Uma destas medidas seria apresentar um documento à Justiça Eleitoral questionando o resultado das eleições presidenciais.
O que prevê a legislação: A legislação eleitoral permite questionamentos ao resultado das eleições. Um dos caminhos é a verificação extraordinária das urnas, feitas pelas entidades fiscalizadoras (instituições que acompanham o desenvolvimento das urnas para o processo eleitoral). Mas o pedido deve ser feito seguindo as regras eleitorais, na busca de garantir o interesse público. Ao rejeitar o pedido de verificação, o Tribunal Superior Eleitoral concluiu que o PL não apresentou indícios que justificassem a medida. E aplicou uma multa de mais de R$ 22 milhões, por atuação irregular diante da Justiça.
Relatório do Ministério da Defesa sobre urnas
O que diz a denúncia: a PGR concluiu que a organização criminosa usou o Relatório de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação, produzido pelo Ministério da Defesa, para estimular o discurso de fraude nas urnas.
O que prevê a legislação: as Forças Armadas atuaram, em 2022, como uma das entidades fiscalizadoras do processo eleitoral. Pelas regras da Justiça Eleitoral, estas entidades são autorizadas, por exemplo, a ter acesso aos sistemas eleitorais desenvolvidos pelo tribunal e ao código-fonte, um conjunto de linhas de programação de um software com as instruções para que o sistema funcione. A ideia é garantir transparência e participação da sociedade civil. Neste contexto, o Ministério da Defesa fez um relatório, que acabou por apontar que não havia fraude nas urnas. Posteriormente, o TSE retirou as Forças Armadas da lista de entidades fiscalizadoras.
Pareceres da AGU
O que diz a denúncia: a PGR apontou que havia uma proposta de uso da Advocacia-Geral da União para editar pareceres que dariam base para que a Polícia Federal descumprisse ordens do Supremo. A ideia era que a AGU fosse chamada a emitir um posicionamento no sentido de que autoridades não precisam cumprir ordens manifestamente ilegais. A resposta da Advocacia teria efeito vinculante, ou seja, os órgãos do governo deveriam obrigatoriamente seguir o posicionamento – se não o fizessem, estariam sujeitos a crime de responsabilidade.
O que prevê a legislação: a lei que estabelece as regras do funcionamento da Advocacia-Geral da União permite que a instituição edite pareceres vinculantes, ou seja, que devem ser seguidos obrigatoriamente pela Administração Pública. Para isso, o posicionamento da Advocacia passa pelo chefe da pasta e deve ter o aval do presidente da República. Descumprir o parecer vinculante é como descumprir um decreto do presidente. No entanto, pareceres da AGU não estão acima das leis e da Constituição. Assim, se contrariarem as leis e a Carta Magna, não são válidos.
Denúncia
A denúncia da Procuradoria-Geral da República será analisada pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe ao tribunal definir se ela será recebida ou não. No primeiro caso, será aberta uma ação penal, que vai tramitar na Corte. No segundo caso, o tema será arquivado.
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