Relembre o culto ao Vodum Serpente, que deu o título à Viradouro em 2024

A Viradouro foi a grande campeã do Grupo Especial do Carnaval 2024 no Rio de Janeiro. E a serpente deslizando na comissão de frente da Unidos fo Viradouro, que ganhou o Estandarte de Ouro de Melhor Comissão, chamou muito a atenção e empolgou o público.
Dan seria um vodum maí representado na forma de uma serpente arco-íris. É equivalente ao loá Dambalá do tambor de Mina, vodu haitiano e ao orixá Oxumarê do candomblé.
É entendido como símbolo da continuidade, riqueza, fortuna, força vital, movimento e tudo que é alongado. É tido como a serpente que morde a própria cauda, gerando um circuito fechado, e que sustenta a terra, impedindo que se desintegre.
Contas azuis de nome Nana ou pedras de Aigri são comumente denominadas Dã Mi (excremento de Dã) e são deixadas por ele no chão conforme passa. Diz-se que valem seu peso em ouro e seu assento fica fora das casas e templos.
É representado por dois potes, um macho, encimado por pequenos chifres, e outro fêmea. Por também habitar algumas árvores, nos pés destas são postos seus símbolos.
Dan serve como protetor e auxiliar dos demais voduns, sobretudo de Quevioço, a quem ajudou a subir ao céu quando desceu à terra. A Viradouro promete mostrar toda essa cultura na Sapucaí e desmistificar a ideia de que a crença vodum é negativa.  
No Antigo Daomé, este culto se intensificou. Por lá, Dan, como é chamada a Serpente Sagrada, transformou-se no maior símbolo de culto daquele povo, também sendo chamado pelo nome de vodun-besen.
Dangbé é o Vodum da proteção, do equilíbrio e do movimento. Nele, nada principia nem finda, tudo avança, tudo retorna. Ele resplandeceu entre os povos de Uidá, na Costa da Mina, após a épica batalha contra o reino vizinho de Aladá.
Dessa forma, a serpente atravessou os campos onde estava o exército de Aladá, indo se unir ao lado adversário. O animal foi erguido para que fosse visto pela tropa inimiga, prostrada diante dela. Assim, foi consagrada a vitória de Uidá.
A nação passou a levar oferendas e a realizar grandiosas procissões em direção ao templo erguido para reverenciar adivindade. Assim, o Dabgbé se uniu a outros Voduns ofídicos presentes no reino de Daomé. 
Passou, então, a estar presente em batalhas nas quais teve destaque um poderoso exército feminino, das guerreiras Mino. Mulheres-soldados consagradas na fé e nas batalhas, protegidas pelo sobrenatural. Foram as mais temidas do mundo, eram esposas e guardiãs do palácio do Rei do Daomé.
Em uma sagrada assembleia, elas cultuavam o vodum e realizavam um pacto místico para que nunca traíssem umas às outras. Esse espírito de coletividade era a arma mais poderosa que tinha, formando uma poderosa irmandade. O reino de Daomé é conhecido atualmente como parte do território de Benin, na África Ocidental.
Esses atributos, assim como a relação com o vodum serpente atravessaram o oceano e chegaram ao Brasil. Surge, então, o nome de Ludovina Pessoa, que segundo a tradição oral seria uma guerreira Mino. Ela tornou-se o pilar de terreiros consagrados aos Voduns. Entre eles, o Seja Hundé, na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, e o terreiro de Bogum, erguido no coração de Salvador.
No Bogum, casa centenária de liderança feminina, foram plantadas sementes de liberdade, tornando-se importante local de apoio à Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador na primeira metade do Século XIX.
Com a Ludovina Pessoa ao Brasil, os preceitos do vodun e do culto à serpente foram essenciais para a construção do candomblé jeje, uma vertente da religião de matriz africana.
O terreiro de Bogum, em Salvador, citado no samba da escola de Niterói, é essencial para entender a transição do culto à serpente para o Brasil. Uma construção que é fruto da força e da grandeza da sabedoria oral que se cultiva nos terreiros, legítimos museus e bibliotecas do sagrado.
Com a relação entre mulheres e voduns, elas tornaram-se senhoras da cura, da fortuna, da fertilidade, das adivinhações, dosconselhos e do destino. Em Cachoeira, no terreiro do Seja Hundé, Ludovina foi o elo entre muitas das sacerdotisas ao estabelecer clãs e irmandades.
Seria uma rede matriarcal associativa, erguida com devoção e lealdade. Essa relação era firmada sob o culto à serpente e aos preceitos ancestrais. Uma crença com encantamento, ritos e mistérios, que deixa um legado na formação do candomblé.
Arroboboi, presente no refrão, é um saudação e evocação da energia que transita entre o céu e a terra. A entidade presente no encantamento do arco-íris, que seria a ponte sagrada que liga os humanos às divindades Voduns. Um culto recheado de ensinamentos das eternas herdeiras de Dangbé.
Mais uma vez a figura feminina presentes na Viradouro, que é uma agremiação que tradicionalmente já levou à avenida muitos enredos ligados às mulheres. Dercy Gonçalves, Tereza de Benguela, Anita Garibaldi, Bibi Ferreira, Ganhadeiras de Itapuã, entre outras.
No samba da Viradouro, o termo alafiá refere-se à confirmação ou permissão pelos oráculos, indicando caminhos abertos para determinado empreendimento ou ação. Já Gu Rainha seria o Vodum no qual Ludovina Pessoa era iniciada, sendo uma variação do Vodum do ferro e da tecnologia
O enredo busca também ressignificar para a sociedade um conjunto de práticas de magias que compõem um legado ancestral, que tentam ser apagadas desde os tempos coloniais. Vodum ficou conhecido com a imagem de bonecos para fazer o mal, porém é uma construção cultural e religiosa importante no Brasil e também em Salvador.
Na ideia do enredo, as escolas de samba se consolidam como linguagem artística que alcança imensa repercussão e é baseada na vivência comunitária e herança histórica. Elas têm responsabilidade com a representação do sagrado, neste caso os povos da diáspora.
Ao longo dos séculos, a imagem da serpente foi constituída a partir de um viés negativo e reduzida ao campo do maligno, como o pecado no Jardim do Éden. Por outro lado, em diversas crenças, este animal tem poderes de regeneração, vida, transformação e recomeço.
O culto às serpentes, portanto, realizado por diversas matrizes religiosas africanas, não é um bloco monolítico. A divindade das cobras irá aparecer como encantada, guerreira, cultuada, camuflada e manifestada por meio das cores do arco-íris.
A serpente revela formas próprias e deixa rastros de encantamento, afetando nações e povos, O maior exemplo disso foi no episódio histórico da batalha entre Uidá e Aladá, quando a serpente píton surge como personagem mítico determinante para a vitória.
Ela não possuía veneno, porém seu poder divino foi qualificado por europeus do Século XVIII como fator de ameaça e estranhamento. Seria uma espécie de “veneno civilizatório”.Uma metáfora da intolerância que as religiões de matriz africana sofrem.
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