Sentimos falta do presidente que morreu antes de tomar posse

Tancredo Neves foi eleito presidente, mas faleceu antes de tomar posseDivulgação/Gervásio Baptista

Por Nuno Vasconcellos

“A esperteza, quando é muita, fica grande e come o dono”. Esse ditado mineiro era repetido com certa frequência pelo ex-presidente Tancredo Neves — um dos grandes mestres da política brasileira. Conhecido por buscar a conciliação diante de impasses delicados, ele também ficou famoso pela firmeza nos momentos difíceis.

Jamais deixou de tomar as decisões que lhe cabiam nem de partir para o confronto se fosse necessário. Por sua capacidade de fazer política, Tancredo, ao lado do deputado Ulysses Guimarães e de outros políticos maiúsculos, conquistou o apoio da sociedade e liderou o processo que levou ao fim do regime militar e deu início à redemocratização do Brasil.

A trajetória de Tancredo é mencionada aqui por uma razão simples: no próximo sábado, 15 de março, completam-se 40 anos do dia em que ele deveria ter assumido a presidência da República. Na véspera da posse, ele sentiu dores e foi internado às pressas no Hospital de Base, em Brasília. Transferido para São Paulo, morreu pouco mais de um mês depois, em São Paulo. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente José Sarney. A rota traçada por ele, no entanto, parecia forte o bastante para fazer do Brasil uma democracia sólida, inclusiva e socialmente justa.

A obra não está completa. A democracia brasileira, ao longo desses quarenta anos, tem sido submetida a dezenas de testes e sobrevivido a todos eles. Seus limites têm sido testados em várias ocasiões e, sem descer a detalhes em relação aos episódios mais críticos, ela sai de cada um deles mais forte do que entra. É nítido que, mesmo com todos os altos e baixos que enfrentou, o país teve nesse período avanços importantes tanto no campo da economia quanto no cenário institucional.

Ainda há muito trabalho pela frente. Quem acompanha com atenção tudo o que vem acontecendo no país ao longo desses quarenta anos se dá conta de que a democracia, por mais sólida que se mostre a cada momento, sempre precisa ser protegida. Também fica claro que nem tudo o que é feito em nome dela contribui para fortalecê-la.

Isso mesmo! A cada dia fica mais evidente que é muito mais fácil bater no peito e se apresentar como defensor da democracia do que praticar os princípios que consolidam esse regime.

É muito mais fácil culpar os adversários por todos os riscos que ela corre, e querer destruí-los com as armas fornecidas pela própria democracia, do que conquistar a sociedade e obter apoio suficiente para fazer com que um determinado ponto de vista se sobressaia e oriente as decisões que se aplicarão a todos.

VITÓRIAS NO TAPETÃO 

Na democracia, que, conforme dizia o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill, “é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, as pessoas em posição de destaque precisam ser lembradas o tempo todo de que “a esperteza quando é muita”, como citava o doutor Tancredo, “fica grande e come o dono”. Infelizmente, porém, as demonstrações de “esperteza” têm surgido com frequência.

Elas se manifestam, por exemplo, nas atitudes mais corriqueiras que senadores e deputados tomam para se impor sobre os adversários. Sem votos suficientes para fazer com que seus interesses triunfem, eles apelam para outros poderes para tentar ganhar no “tapetão” as batalhas que não têm força nem competência para ganhar no parlamento.

Exemplos dessa prática estão por toda parte. Um dos mais recentes foi dado pelo líder do PT na Câmara dos Deputados, Lindbergh Farias (RJ), por seu correligionário Rogério Correia (MG) e por Guilherme Boulos (PSOL-SP). Na semana passada, o trio resolveu transformar a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro em alvo de suas ações. De uma hora para outra, Farias, Correia e Boulos cobraram da Procuradoria Geral da República explicações sobre um inquérito que envolve a mulher do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Não satisfeitos, solicitaram à Polícia Federal, à Controladoria Geral da União e à Casa Civil da Presidência de República rigor nas investigações em curso contra Michelle.

Em suas petições, suas Excelências exigem detalhes sobre os gastos de Michelle com cartão corporativo durante o mandato do marido, concluído mais de dois anos atrás. Querem, também, apurações sobre as transferências de dinheiro que ela teria recebido das contas correntes do marido.

A movimentação não nasceu da revelação de nenhum fato novo em relação à conduta de Michelle durante a presidência de seu marido. Tudo, conforme os próprios autores admitem, não passou de uma estratégia esperta dos parlamentares de utilizar recursos públicos para obter benefícios privados. Tudo o que querem, ao mobilizar o aparato estatal contra Michele, é tentar conter o bombardeio de críticas e até mesmo de petições que vêm se avolumando contra a atual primeira-dama, Janja da Silva. Para “cada requerimento contra Janja, nós vamos apresentar dois contra Michelle Bolsonaro”, ameaçou Lindbergh Farias em suas contas nas redes sociais.

“A TURMA DA RACHADINHA” 

Sem querer jogar lenha na fogueira da “guerra das primeiras-damas”, que muita gente insiste em alimentar, e, menos ainda, sem a intenção de antecipar o debate sobre a possível presença do nome de Michelle entre as alternativas para a corrida eleitoral que só terá seu desfecho no final do próximo ano, é bom refletir sobre esse tipo de atitude. Uma das acusações mais graves feitas à ex-primeira-dama pelos deputados, vejam só, é de prática de rachadinha. Na postagem em que o líder do PT declara guerra contra Michelle em defesa de Janja, ele diz que “a turma da rachadinha com cartão corporativo não tem moral”.

É aí que a situação fica ainda mais interessante.

Se a suposta prática da rachadinha é sintoma de falta de moral para os adversários, ela é aceita, perdoada e, talvez, até aplaudida como um sinal de “esperteza” quando feita por aliados!

Relator, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, do processo fartamente documentado contra o governista André Janones (Avante-MG), por prática explícita de rachadinha, o deputado Guilherme Boulos, um dos signatários das ações contra Michelle, pediu no ano passado o arquivamento da matéria.

Ele não viu, no episódio escandaloso protagonizado por Janones, razão suficiente para pedir a cassação do “rachador” confesso. Por mais claras que fossem as gravações em que o parlamentar governista exige dos funcionários de seu gabinete uma parte de seus salários, elas não foram vistas por Boulos como provas suficientes para condenar o companheiro.

No inquérito conduzido pela Polícia Federal, ficou claro que Janones não apenas exigia que os funcionários depositassem dinheiro em sua conta, como usava o cartão de crédito de um dos assessores para pagar suas despesas pessoais.

A lista de crimes é extensa, mas, na semana passada, a PGR resolveu passar uma borracha e deixar tudo por isso mesmo. E ofereceu ao parlamentar governista um Acordo de Não Persecução Penal que o livra de qualquer responsabilidade pela prática.

A única punição, se é que se pode chamar isso de punição, será o pagamento de uma multa modesta (só para não perder a anedota: resta saber a origem do dinheiro que Janones utilizará para fazer o pagamento).

LESA PÁTRIA

Já pensou se, na resposta ao pedido dos deputados contra a suposta “rachadinha” praticada por Michelle, a PGR se valer do rigor que não utilizou contra o companheiro Janones? Seja como for — e por mais decepcionante que tenha sido a tibieza da “punição” aplicada contra o réu-confesso —, o que interessa discutir aqui é o hábito recorrente dos parlamentares que entregam a outros poderes o direito de dar a palavra final sobre decisões que lhes competem.

Sim. A ação dos deputados em defesa de Janja teria sido justa, defensável e até elogiável se tivesse ficado circunscrita aos limites do parlamento. O mesmo vale para os ataques a Eduardo Bolsonaro (PL). Acontece que o ato de abrir mão da própria autoridade e entregar nas mãos do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal o poder de decidir em seu nome tem sido uma manifestação de esperteza recorrente por parte de parlamentares.

Na semana retrasada, Lindbergh e Correia registraram no STF uma ação contra o deputado Eduardo Bolsonaro — filho do ex-presidente Jair e favorito para assumir a presidência da estratégica Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

Os petistas pediram que a Corte retenha o passaporte do deputado e que o investigue criminalmente por “articular ações contra o STF” junto a políticos norte-americanos.

Segundo o pedido, Eduardo teria cometido crime de lesa-pátria e atentado contra a soberania nacional ao criticar o atual governo e o Poder Judiciário do Brasil, em um evento recente com políticos conservadores nos Estados Unidos.

Ora, ora, ora… como parlamentares que são, em pleno exercício de seus mandatos, num ambiente que, até segunda ordem, lhes assegura mecanismos de ação dentro do próprio poder Legislativo, os deputados jogam por terra a importância do próprio cargo ao pedir que os poderes Executivo e Judiciário ajam e decidam por eles.

Ou seja, renunciam ao poder de realizar aquilo que eles foram eleitos para fazer. A impressão que se tem é a de que, na verdade, se esquivam do confronto legítimo de ideias no espaço apropriado, que é o plenário da Casa, e delegam a outras instituições o poder de falar em seus nomes.

GANHAR NO GRITO 

Trata-se de uma estratégia deliberada, conhecida pela expressão em inglês lawfare (que, numa tradução livre, significa “guerra legal”).

Ela consiste em buscar vantagens políticas por meio da exploração de minúcias da legislação, e está por trás do processo cansativo e irritante de judicialização excessiva que vem empobrecendo a prática política no Brasil.

A impressão que se tem é a de que o preceito democrático, segundo o qual as decisões são tomadas pela maioria, caiu por terra no Brasil. Qualquer resultado obtido em plenário acaba sendo desrespeitado e transformado em objeto de contestação na Justiça — sobretudo por parte de partidos que não têm força, capacidade de articulação política e muito menos apoio popular suficientes para fazer valer suas posições.

É por essa razão que várias medidas aprovadas no Congresso por ampla maioria, algumas delas com o apoio incontestável da sociedade, perdem completamente seu efeito depois de passar pelo crivo da Justiça.

Basta que alguma bancada nanica não concorde com a decisão da maioria para correr em busca de ajuda no tapetão.

Há vários casos como esses. Para citar apenas dois exemplos, basta lembrar a lei que instituiu o Marco Temporal para a demarcação das terras indígenas e da que proibiu a chamada “saidinha” de presos nos feriados.

Um levantamento feito pela revista Veja no ano passado, mas que ainda não perdeu a atualidade, contém número reveladores sobre essa prática. De acordo com a revista, entre 2018 e 2024, nada menos do que 807 recursos foram apresentados ao STF por partidos políticos. Os campeões desse tipo de procedimento foram o PDT, com 108 ações, o PSB, com 106, a Rede, com 105, o PT, com 100, o PSOL, com 91 e o PcdoB, com 57. Como se vê, os partidos de esquerda são os campeões quando se trata de tentar ganhar no grito as matérias que são incapazes de ganhar no plenário.

Os números são reveladores do hábito de se esconder atrás da toga do primeiro magistrado que encontram pela frente para tentar chegar aonde não conseguem ir com as próprias forças. Ele é uma das principais causas do empobrecimento da política brasileira e do consequente enfraquecimento do poder do parlamento frente aos outros poderes.

Não são, como fica claro pelo número de recursos levados pelos partidos aos tribunais, os juízes que tomam para si a iniciativa de avançar sobre as prerrogativas do poder Legislativo. São os próprios senadores e deputados que têm entregado de mão beijada parte de seu poder de decidir ao Executivo e ao Judiciário.

O fenômeno é preocupante, e os únicos com poder de contê-lo são os próprios parlamentares. Mas, pelo andar da carruagem e pela naturalidade com que a turma recorre à Justiça e ao Ministério Público para fazer aquilo que lhes compete, o mais provável é que essa esperteza ainda cresça muito antes de ficar grande o suficiente para comer o próprio dono.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG

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