‘Pago por um erro que ele cometeu, mas não abandono’: quem são as mulheres que se dedicam a visitar maridos e filhos presos


Maioria entre visitantes dos presídios do interior de São Paulo, mães, esposas e filhas vivem rotina de esforço, dedicação e tristeza para rever familiares encarcerados. Comércio no entorno de presídio masculino se ‘especializa’ em visitantes mulheres
O dia nem bem amanhece quando a frente do Complexo Penitenciário de Hortolândia, no interior de São Paulo, é tomada por um fluxo intenso de ônibus e vans. Deles desembarcam centenas de passageiras com suas sacolas pesadas e não demora para que um mar de calças legging e camisetões cor-de-rosa se forme pela calçada. É sábado, dia de visita.
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Esposas, namoradas, mães e filhas acordam cedo ou sequer dormem na expectativa de rever o familiar encarcerado. A maioria delas é de alguma cidade vizinha, mas há quem venha da capital paulista num bate-e-volta semanal para matar a saudade, como é o caso de Ana Carolina Nogueira. “A gente tá aqui porque ama muito eles”, diz, ansiosa para ver o companheiro.
Praticamente não se vê homens, mas esse cenário não é surpresa. Números da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) mostram que nos 11 presídios da região de Campinas (SP), onde a unidade está localizada, dos 29.182 visitantes cadastrados no primeiro semestre de 2024, 75% eram mulheres – incluindo unidades femininas e masculinas (veja o gráfico abaixo).
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As tais visitantes, aliás, têm todas as idades. São jovens de vinte e poucos anos ou idosas em passos lentos. Algumas trazem no colo os filhos pequenos e uma maioria quase absoluta é acompanhada por carrinhos de feira com bolsões transparentes. Levam marmitas, refrigerantes, sabonetes e até aparelhos de barbear.
Mulheres que, em meio a demonstrações de cuidado e afeto, não escondem a tristeza. As visitantes vivem uma pena não pronunciada ao se desafiarem para estar presente todos os finais de semana, apesar de qualquer mágoa, enquanto se sentem humilhadas na hora da revista ou ao escutar os lamentos de quem, lá dentro, sonha com a liberdade.
“Venho desde 1982, quando era meu ex-marido. Agora quem está é meu filho, meu caçula. É terrível, mas a gente sabe que tá guardado, né? Não tá preso, tá guardado. Deus está guardando aí dentro. Eu prefiro ele aí do que enterrar um filho meu”, relata Sandra Aparecida Giácomo de Souza, de 57 anos, que presta visitas semanalmente.
‘Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere’
Complexo Penitenciário de Hortolândia, no interior de São Paulo, em dia de visita
Estevão Mamédio/g1
Na semana do Dia das Mulheres, o g1 publica a série especial “Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere”, que aborda as diferentes relações e desafios que elas enfrentam diante o sistema prisional. Ao longo da semana, a série vai mostrar:
Histórias na fila de mulheres que visitam homens em um complexo penitenciário de SP
Dados de visitação para mulheres e homens no sistema penitenciário
O encontro da reportagem, dentro do presídio, com mulheres sem visita há quase 3 anos
O que está por trás do abandono da mulher encarcerada segundo especialistas
Relatos de mulheres que criaram uma rede de apoio e movimentam a economia local no entorno dos presídio
‘Tudo que eu vou comer em casa eu tenho lembrança dele’
Laurinda Teixeira é de Jundiaí (SP) e visita o filho de 47 anos que está preso em Hortolândia
Estevão Mamédio/g1
O Complexo Penitenciário de Hortolândia é formado pelos centro de Detenção e de Progressão provisórios, CDP e CPP, e pelas Penitenciárias II e III – os três últimos chamados de P1, P2 e P3. Até o começo do ano passado a população chegava a 4.810 e estavam cadastrados 14.095 visitantes, sendo 77% mulheres, conforme o Sisdepen e a SAP.
A visitação é sempre aos sábados e domingos, das 8h às 16h, mas os preparativos começam antes. Laurinda Teixeira, por exemplo, aproveitou o jantar da noite anterior para cozinhar os pratos que o filho preso mais gosta. Macarrão, bife com fritas e arroz fresquinho vão parar na marmita. Ela mora em Jundiaí (SP) e tenta visitá-lo ao menos uma vez por mês.
No carrinho de feira que a acompanha até a cela, há também um pacote de pão de forma e frios, salgadinhos, biscoitos e outras guloseimas que ela comprou durante a semana. Um jeito de matar a saudade e demonstrar carinho. “Fiz janta ontem, aí eu coloco na geladeira. Eu levantei 2h, então não dá tempo pra fazer janta. Aí só deixo assim, pra fazer uma mistura cedo”.
“Sinto muita saudade. Tudo que eu vou comer em casa eu tenho lembrança dele, sabe?”, confessa.
A mãe idosa carrega consigo mais do que saudade. Ela convive também com um clamor por justiça. Diz que o filho de 47 anos foi preso por pegar carona em um carro roubado e agora torce para que os advogados lhe reconquistem a liberdade. “Ele tá aí pagando por uma coisa que ele não fez. Então… Isso dói na gente, sabe? Porque, se fosse um menino que aprontasse na vida…”.
‘Ele aqui fora é meu braço direito’
Aos 27 anos, Giovanna Kimberly está grávida e visita o marido preso
Estevão Mamédio/g1
Giovanna Kimberly, de 27 anos, visita o esposo preso há quatro e destaca que esse é um dos dias mais felizes da semana. “Ele sempre vem com um sorriso de orelha a orelha, né? Pra eles, querendo ou não, é o melhor momento. É quando tem a visita, né?”. Porém, ela concorda que não é fácil.
Mãe de duas crianças pequenas e grávida do terceiro, a jovem doa parte do seu tempo semanalmente para organizar e carregar, sozinha, as sacolas pesadas que levam algum conforto ao amado. “Ele aqui fora é meu braço direito. Eu tô aqui toda semana, até onde Deus permitir eu tiver condições, eu tô aqui”.
“Ele ficou quatro anos no fechado, né? Aí ele veio, ficou um tempinho agora na rua e quando foi agora voltou de novo. Entendeu? Nossa, é difícil demais ter que se virar sozinha, tudo sozinha, né? Tenho mais filhos além desse que tá vindo agora. Então, é bem complicado”.
‘Pago por um erro que ele cometeu, mas eu não vou abandonar’
Ana Carolina Nogueira mora em São Paulo e vai até Hortolândia, toda semana, para visitar o marido preso
Yasmin Castro/g1
Moradora de São Paulo, Ana Carolina visita o esposo na cadeia há alguns anos. A última transferência foi para Hortolândia, cidade que fica a mais de 100 quilômetros de casa. Para ela, a distância e o trajeto não são a pior parte.
Difícil mesmo é ver a pessoa amada sendo marginalizada e se sentir castigada junto. “Acham que tem ali dentro é animal, não é ser humano. São pais de família. Eles erraram, estão pagando pelo erro deles, mas são seres humanos e merecem respeito”, desabafa.
“Inclusive nós, visitantes, quando chegamos nas unidades, muitas vezes, somos mal tratadas pelos agentes. A gente não está ali compactuando com o erro deles. A gente está ali para ajudar, para tirar eles dessa vida, mas muitas vezes a gente é tratada como um marginal, como se fosse bandido”.
“É humilhante, é triste. Infelizmente, é o meu marido. Eu tô com ele, amo ele e vou ficar até o final. Não tem o que fazer. Ele está pagando por um erro que cometeu. Eu, por uma parte, pago também por um erro que ele cometeu, por eu estar com ele, mas eu não vou abandonar”, completa.
‘Você fica morrendo de vergonha’
Maria Flora Barbosa, de 46 anos, visita o marido preso em Hortolândia
Estevão Mamedio/g1
Sentimento compartilhado por Maria Flora Barbosa, de 46 anos. Vergonha e humilhação, segundo a dona de casa, são companhia a cada visita. “É horrível, porque é um dia antes que você não dorme. Você tem que se preparar, comprar as coisas, é um dia perdido. À noite você não dorme porque tem que preparar a comida pra trazer já pronta”.
“Você chega aqui, pega fila, sobe lá pra cima. O portão abre 7h30, você fica numa fila. Se tiver sol, você fica no sol, se tiver chuva você fica na chuva. E aí, depois, a gente entra pra revista. Eu já passei umas duas ou três vezes no scanner e tinha homem ali. Você fica morrendo de vergonha. Ele fala empina, põem a perna pra frente”.
“Eu acho que mereceria o mínimo de respeito. E não tem respeito, sabe? A gente, é assim, eles falam, você tem que abaixar a cabeça, eles te humilham. É uma situação assim que toda mulher que vem aqui, eu posso te dizer, que vem porque ama o marido, ama o filho”.
A SAP afirmou por meio de nota que “todas as revistas realizadas nas unidades do Complexo Penal Campinas Hortolândia seguem rigorosamente os padrões estabelecidos pela legislação vigente”. Disse, ainda, que mantém um canal para as pessoas denunciarem irregularidades por meio da Ouvidoria e da Corregedoria, ambos disponíveis no site www.sap.sp.gov.br.
‘Tem que amar pra estar num lugar desse’
Com sacolas cheias de comida e produtos de higiene, Mirtes visita o marido semanalmente na Penitenciária de Hortolândia
Yasmin Castro/g1
Amor é mesmo a resposta para muitas delas. Para Mirtes Aparecida Costa, que tem 44 anos e acompanha as idas e vindas do marido na prisão há 28, a justificativa para manter o casamento entre grades não poderia ser outra. “Você tem que amar pra estar num lugar desse, porque, se não gostar mesmo, do fundo do coração, não dá”.
“É difícil. Umas abandonam, vai dois anos, três anos, abandona. […] Quando eu vejo ele o coração dispara. Na hora de embora o coração chora, fico triste. Faz um ano que ele tá aqui, desde então, toda semana eu tô aqui. É no sábado, é no domingo, toda semana”.
Maioria entre visitantes, minoria entre visitados
A multidão de mulheres visitantes não é exclusividade do Complexo Penitenciário de Hortolândia (SP). Em toda a região de Campinas (SP), onde a unidade está localizada, dos 29,1 mil visitantes cadastrados nos 11 estabelecimentos prisionais, apenas 7,1 mil são homens – considerando dados do 1º semestre de 2024.
O principal índice está, justamente, na Penitenciária II de Hortolândia, onde 78,7% dos visitantes são do sexo feminino. Nas penitenciárias femininas de Mogi Guaçu e Campinas elas também representam uma parcela relevante. Na primeira, o público feminino chega a 64,8%, e na segunda é de 66,4%.

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Embora sejam maioria entre visitantes, as mulheres presas são minoria entre visitados na região. Dados do Sisdepen, painel que reúne informações sobre o sistema penitenciário brasileiro, mostram que enquanto 85,7% dos homens presos têm visitantes cadastros, apenas 55,3% das detentas recebem visitas.
Essa é a realidade de Roberta, Júlia e Márcia, detentas de Mogi Guaçu que não recebem visitas desde que foram parar atrás das grades. O g1 visitou a penitenciária feminina, com autorização da SAP, e conversou com as três, que são mães e não veem os filhos há meses.
Confira AQUI a reportagem completa com os relatos destas mulheres.
O cuidar é atribuído às mulheres
A pesquisadora e antropóloga Natália Corazza Padovani, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, diz a forte presença feminina nas filas de visitação não é justificada apenas pelos vínculos que elas, cônjuges e mães, têm com os homens presos. Para ela, a explicação está além e tem a ver com o que, socialmente, se entende como obrigação feminina: o cuidado.
“Ir à prisão, fazer uma visita, é um ato de cuidado. Esse ato de cuidado é socialmente categorizado enquanto feminino […] o trabalho de cuidado é um trabalho atribuído socialmente às mulheres, pensando enquanto feminino”, comenta.
“Eu fiz visitas em prisões, eu acompanhei homens que faziam visitas, e eu acho importante dizer que não são exclusivamente mulheres, existem homens, ainda que sejam minoria. Mas o fato de serem majoritariamente mulheres, tem a ver com toda uma estrutura social, de relações sociais, que atribuem determinadas atitudes, determinados fazeres, como femininos e outros enquanto masculinos”.
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