Abdias Nascimento: ativista foi precursor da criminalização do racismo e do feriado da Consciência Negra


No período em que atuou como deputado e senador, antes da Constituição de 1988, intelectual propôs ações hoje existentes como cotas e a inclusão da história da cultura africana no currículo escolar. Abdias Nascimento: ativista foi precursor das cotas e do feriado da Consciência Negra
“Senhor presidente, senhores deputados. Invoco o nome de Olorum, criador de todas as coisas: dos seres humanos e do universo. Invoco as forças telúricas da nossa pátria ancestral, a mãe África.” Com essas palavras, da tribuna no Congresso Nacional, o intelectual, ator e ativista Abdias Nascimento (1914-2011) iniciava sua carreira como deputado federal, em 1983.
Com a menção às matrizes africanas, Abdias fazia questão de deixar evidente que, se outros políticos, cristãos, podiam falar em nome de Deus, ele também poderia usar as referências religiosas dele e de milhões de brasileiros – historicamente atacadas e hostilizadas – para se expressar.
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Considerado o primeiro deputado federal a defender pautas relacionadas ao combate à discriminação racial, Abdias Nascimento já antecipava, no discurso e na propositura de projetos, alguns dos avanços em políticas públicas que hoje tentam compensar a perseguição histórica aos povos africanos no Brasil, desde a escravização nos tempos coloniais.
Do ensino da cultura afrobrasileira ao feriado da Consciência Negra, hoje celebrado nacionalmente em 20 de novembro, o ativista nascido em Franca (SP) abriu o caminho para a concretização dessas medidas, anos mais tarde.
“Quem coloca debaixo do braço essas propostas coletivas e leva para uma instância de governança, no sentido do parlamentar, é o Abdias Nascimento. Essa é a grande contribuição dele, de pegar essas lutas coletivas, pensadas pelo movimento negro”, afirma Júlio Menezes Silva, gerente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), entidade criada nos anos 1980 e que se dedica a preservar o legado artístico, político e intelectual deixado por Abdias.
Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre e a trajetória do ativista, intelectual, ator, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento, que, se estivesse vivo, completaria 111 anos em março.
Abdias Nascimento em visita à Serra da Barriga, local que abrigou o Quilombo dos Palmares.
Acervo Abdias Nascimento/ IPEAFRO
A África no sistema de ensino e as cotas raciais
Abdias lutou em defesa da igualdade racial ao menos desde os anos 1930, quando fez parte da Frente Negra Brasileira (FNB), em São Paulo, pouco depois de deixar a cidade natal, Franca.
Os ideais que defendeu ao longo das décadas, seja nos congressos realizados mundo afora, seja nos trabalhos apresentados no Teatro Experimental do Negro, seja como professor em universidades internacionais, ganhariam forma e força em projetos de lei apresentados em Brasília, a partir dos anos 1980.
Dois anos depois de voltar ao Brasil após um exílio de 13 anos nos EUA por conta da perseguição da Ditadura Militar, Abdias assumiu, em 1983, uma cadeira no Congresso Nacional que ocupou até 1987. A trajetória como deputado federal – e também como senador, no anos 1990 – foi marcada por propostas que, a despeito dos arquivamentos ou negativas da época, seriam concretizadas anos mais tarde.
Abdias Nascimento durante encontro sobre cultura afro-americana durante o exílio político nos EUA, em 1978
Ron Wofford/ Acervo Ipeafro
Assim que assumiu, ele propôs a criação da Comissão do Negro na Câmara para levantar informações sobre a discriminação racial e para propor políticas de reparação, mas foi rejeitada pela Comissão de Constituição e Justiça, que a considerou inconstitucional ao mencionar uma suposta “discriminação positiva.”
No mesmo ano, Abdias colocou em pauta um projeto de lei que previa ações compensatórias a favor dos negros em diferentes setores, sob a justificativa de que o Estado era responsável por adotar medidas para assegurar igualdade de condições de trabalho, remuneração, educação e tratamento policial. Propunha, por exemplo, a reserva de 20% de vagas para negros em concursos públicos e no setor privado, bolsas de estudo para jovens negros e a incorporação ao sistema de ensino da história de civilizações africanas.
Em 1984, o deputado também sugeriu a reserva de 40% de vagas no Instituto Rio Branco para formação de diplomatas. Texto que também foi barrado na época.
Apesar disso, 20 anos depois dessas proposta, a Lei 10.639, de 2003, tornou obrigatório o ensino da história e da cultura de matriz africana, apesar dos questionamentos futuros que ocorreram desde então. Em 2012, as cotas raciais inspirariam a criação de uma lei para reservas em universidades federais e, na sequência, de outros avanços, como a garantia de vagas em processos seletivos para cargos públicos. Desde 2002, existe um programa de bolsas para alunos negros no Instituto Rio Branco.
“O grande feito do Abdias foi criar esse caminho para que nós possamos pegar esse legado e levar adiante, olhando sempre para esse passado, coletivo, para compreender esse presente e refletir sobre o futuro”, afirma Júlio.
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Abdias Nascimento na Câmara dos Deputados, em Brasília. Ativista e político foi precursor de conquistas como as cotas raciais.
Acervo Ipeafro
Consciência Negra e criminalização do racismo
Também foi em 1983 que o então deputado federal apresentou o projeto 1.661, que definia o racismo como crime de lesa-humanidade. Até então, existia em vigor a Lei Afonso Arinos, que estabelecia apenas como contravenção penal alguns casos de discriminação.
No novo texto, Abdias estabelecia que a discriminação ocorria em todo ato ou omissão, seja ele explícito, dissimulado ou empírico, que resulte em tratamento diferenciado que cause ofensa, prejuízo material ou moral. Apesar de ter sido aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, o projeto foi arquivado após uma série de manobras políticas de opositores.
No mesmo ano, ele elaborou o projeto 1.550, que declarava 20 de novembro o Dia Nacional da Consciência Negra, em tributo à morte de Zumbi dos Palmares – último líder do quilombo que abrigou milhares de pessoas que fugiram da escravidão no século 17 na região da Serra da Barriga, em Alagoas. O texto trazia o apoio de 116 organizações e chegou a ser aprovado pela Câmara e pela Comissão de Educação e Cultura do Senado, mas, ao ser levado novamente a plenário, foi rejeitado pelos senadores.
Ao mesmo tempo, também reforçou muitas dessas ideias nas discussões em torno da Assembleia Constituinte, que resultaria na promulgação da Constituição Federal de 1988.
Hoje, a Carta Magna, além de proibir toda forma de discriminação, define o racismo como crime inafiançável e punível com prisão, em regime fechado. Posteriormente, às proposituras de Abdias também surgiram textos como a Lei do Racismo e o Estatuto da Igualdade Racial. O Dia da Consciência Negra, até então celebrado por alguns estados e municípios como data oficial desde 2011, desde 2024 é celebrado como feriado nacional.
“Como deputado federal, ele apresenta as primeiras propostas de lei para políticas afirmativas, por exemplo, tornar o dia 20 de novembro um feriado nacional, algo que só acontece ano passado, no âmbito nacional. Ele traz essa proposta, naquele momento o projeto de lei não avança, mas ele é o primeiro que apresenta como um parlamentar essas propostas afirmativas que vão vir”, afirma o gerente do Ipeafro.
Abdias Nascimento durante discurso na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1983
Acervo Abdias Nascimento/ Ipeafro
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