‘Lixo fashion’ no Atacama: milhões de toneladas de roupas de marca são descartadas no deserto; ONG entrega peças de graça


Todos os anos, são descartadas cerca de 39 mil toneladas de roupas no deserto do Atacama de forma ilegal. Agora, iniciativa está recolhendo peças e entregando-as gratuitamente para chamar a atenção sobre o descarte e poluição do mercado da moda. Deserto do Atacama recebe milhões de peças de roupa descartadas todos os anos
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Já pensou ter uma roupa de marca famosa sem pagar por ela? Parece inacreditável, mas é exatamente isso que uma organização brasileira, em parceria com ONGs chilenas, está fazendo. Juntas, elas recolhem roupas nunca usadas que estavam abandonadas no deserto do Atacama. O objetivo é chamar a atenção para o impacto da indústria têxtil, que alimenta o mercado da moda.
O deserto do Atacama é um retrato do impacto ambiental do consumo. Todos os anos, são descartadas em meio às paisagens naturais cerca de 39 mil toneladas de roupas de forma clandestina.
🔴 Você pode se perguntar: como essas roupas foram parar lá? Anualmente, mais de 59 mil toneladas de roupas não vendidas, devolvidas ou com defeitos chegam ao porto de Iquique, localizado em uma zona de importação livre de impostos no norte do Chile.
Parte desse material encontra novos destinos, sendo revendida em Santiago ou contrabandeada para outros países da América Latina. Aquelas que não são vendidas ou reaproveitadas terminam descartadas ilegalmente no deserto. Muitas delas, ainda com etiqueta.
Centenas de marcas famosas no mundo todo dão esse destino para suas peças não compradas, principalmente no Norte Global (como Estados Unidos e Europa).
O lixão do Atacama está em funcionamento mesmo havendo um decreto no Chile que proíbe que roupas sejam destinadas a aterros sanitários comuns (por não serem biodegradáveis e terem componentes químicos altamente inflamáveis).
Lixão de ‘fast fashion’ no deserto do Atacama, no Chile
Nicolás Vargas/BBC
➡️ E isso acontece há décadas. Um relatório recente publicado pela Global Fashion Agenda, organização sem fins lucrativos, aponta que mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartadas nos últimos anos.
🔴 E a tendência é piorar: o consumo cada vez mais acelerado mudou a forma como as empresas produzem suas coleções. Há mais peças, com tendências que se renovam em espaços curtos de tempo. Tudo que não é vendido rapidamente se torna lixo.
Todo esse lixo não vai desaparecer. Isso porque o tecido predominante dessas peças é o poliéster, que leva cerca de 200 anos para se decompor. Antes que uma peça desapareça, uma nova surge no deserto.
Uma peça de jeans pode levar até 400 anos para se decompor
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Ação transforma lixo em novas peças
Essas milhões de peças, muitas delas em bom estado, estão sendo recolhidas em uma ação de parceria entre a Fashion Revolution Brasil e a Desierto Vestido, organização chilena.
As peças são coletadas, higienizadas e, depois, disponibilizadas no site da ação, no qual podem ser escolhidas gratuitamente, pagando-se apenas o frete. O valor desse envio pode chegar a R$ 200.
O transporte é realizado por uma empresa que compensa a pegada de carbono gerada no processo, para não produzir mais impacto ambiental.
As últimas 300 unidades, que incluíam desde grandes marcas esportivas até peças de fast fashion, esgotaram-se em cerca de cinco horas. Entre as peças, estavam jaquetas, roupas de academia de marcas famosas, vestidos e jeans. A previsão é de que, em breve, um novo lote seja disponibilizado no site.
Peças são entregues apenas com pagamento de frete, sem custo pelo produto
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🔴 A proposta, segundo as organizações, é chamar a atenção do público para o problema e realizar aquilo que as marcas que descartam as peças se recusam a fazer: entregar gratuitamente aquilo que não consideram lucrativo, ao invés de transformar em lixo.
“Essas montanhas de roupas consideradas lixo simbolizam a situação atual da indústria da moda, que produz além da capacidade de consumo e polui o planeta. O Atacama é símbolo disso, e nossa provocação é justamente rever esse sistema e transformar o lixo da indústria em peças que possam ser usadas, trazendo acessibilidade”, explica Fernanda Simon, Diretora Executiva do Fashion Revolution Brasil.
Fernanda explica que a proposta também é trazer o envolvimento da sociedade para compreender o tamanho do problema, que passa despercebido no dia a dia e muitas vezes não é problematizado. Mas reforça: a responsabilidade não é do consumidor.
No Chile, o deserto do Atacama abriga lixão tóxico da moda descartável do 1° mundo
A indústria da moda é uma das mais poluidoras do mundo
Com as mudanças climáticas, há um debate crescente sobre a necessidade de hábitos com menos impacto ambiental. Mas você já tinha considerado o quanto uma peça em uma arara pode impactar esse processo?
🔴 A indústria da moda é a segunda maior poluidora do mundo, atrás apenas do setor petrolífero. Isso está ligado ao seu formato de produção e às escolhas feitas pelas marcas:
O poliéster tornou-se o material mais usado na indústria e hoje representa mais da metade de toda a produção global de fibras. Vale lembrar que ele é um produto derivado do petróleo, e sua produção já gera impacto significativo, devido à alta energia necessária para extração e processamento.
No processo industrial, segundo a ONU, a indústria da moda é a segunda maior consumidora de água do mundo. Para se ter uma ideia, fabricar uma única calça jeans exige aproximadamente onze mil litros de água, evidenciando o alto uso de recursos naturais.
O método de produção do setor responde por cerca de 10% das emissões globais de carbono — mais do que todos os voos internacionais e o transporte marítimo combinados.
No Brasil, foram comercializadas 6,55 bilhões de peças em 2023, no dado mais recente. Ainda é necessário contabilizar o impacto ambiental associado à produção, à entrega, às embalagens e ao destino final dessas roupas após o uso.
Além disso, há a dispersão de microplásticos, tanto no processo produtivo quanto no uso cotidiano. Uma única lavagem de roupas pode liberar milhões desses microplásticos no ambiente.
Calcula-se que 300 hectares do deserto do Atacama estejam cobertos por lixo
Nicolás Vargas/BBC
A especialista em ESG Marta Camila Carneiro, professora da FGV, explica que o setor precisa repensar seu modelo de negócio para reduzir o impacto ambiental:
“Economicamente, é necessário manter a competitividade, e há um apelo para que as coleções sejam cada vez mais frequentes. No entanto, a indústria produz acima da capacidade de consumo, gerando desperdício e impacto ambiental”, destaca.
A professora defende que, diante do cenário de mudanças climáticas, é urgente cobrar do poder público ações para responsabilizar as empresas pelo impacto gerado e transferir a elas os custos.
“É preciso pressionar o poder público por ações efetivas e mudanças legislativas que punam empresas que descartam resíduos dessa forma. Precisamos exigir monitoramento das cadeias produtivas para saber onde as peças vão parar, com fiscalização adequada. Os prejuízos ambientais são enormes, e a conta fica para o consumidor”, afirma Marta.
O último papel nessa cadeia é o do consumidor. Para Fernanda Simon, do Fashion Revolution, ele é vítima do modelo atual de produção, mas também pode ser um agente de mudança, pressionando por transformações no sistema e repensando sua própria forma de consumo.
“A sociedade não pode ser responsabilizada por aquilo do qual é vítima. Falamos de um mercado enorme. Mas é importante compreender o impacto, saber o que acontece no Atacama e entender o que a marca utilizada está fazendo, para que sejamos também parte ativa na mudança desse cenário”, finaliza Fernanda.
Maior lixão de roupas clandestino do mundo tem apenas 6 funcionários para fiscalização
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