‘Durante quase 500 anos, os velhos eram apenas sobreviventes’, diz escritora


Em seu mais recente livro, ‘Uma história da velhice no Brasil’, Mary Del Priore retrata idosos desde o século XVI “Tudo começou com uma dor no joelho e uma mãe centenária”, afirma, bem-humorada, a escritora Mary Del Priore na abertura do seu mais recente livro, “Uma história da velhice no Brasil”. Em 1549, quando Tomé de Souza chegou à Bahia acompanhado de mil pessoas, entre degredados, colonos pobres e fidalgos, a expectativa de vida era de 21 anos. Era tão difícil envelhecer, ensina, que “vivia-se a velhice como Deus quisesse ou mandasse”.
Mary Del Priore, autora de “Uma história da velhice no Brasil”
Divulgação: Pense D
No entanto, o culto à juventude sempre existiu, mostra Priore, autora de mais de 50 livros e uma referência para os estudos históricos do país. Na Idade Média, menosprezava-se o “farrapo humano” no qual a idade transforma o corpo; o Renascimento exaltava a beleza do corpo jovem.
Guilhermo Piso, médico da comitiva de Maurício de Nassau durante a invasão holandesa, se impressionou com a longevidade dos nativos. Declarou que ela se devia à “água limpíssima, verdadeiro dom dos céus”, e ao clima ameno. Entretanto, o que mais impressionou os primeiros cronistas foram as indígenas idosas, de seios caídos. O fascínio pelo corpo feminino dava lugar à repulsa: imagens das velhas tupinambás circularam pela Europa remetendo às descrições das feiticeiras feitas pela Inquisição católica.
Na verdade, o grande obstáculo para se contar uma História do envelhecimento é que essa etapa da vida humana só começou a ser estudada na década de 1970. “Numa época sem calendário nem relógio, em que a maioria não sabia quantos anos tinha, o marcador da entrada na velhice, para os homens, era um só: a impotência”, escreve Priore, incluindo as receitas utilizadas para restaurar o vigor sexual masculino. Para as mulheres, o “fim” chegava com a menopausa: não poder gerar filhos as destituía das “virtudes sociais da maternidade”.
Nas raras pesquisas de historiadores demógrafos para o Brasil colonial, homens e mulheres com mais de 50 anos e até 80 estão sempre presentes. Curioso é que os médicos portugueses, que vieram com a família real para o Rio de Janeiro em 1808, acreditavam que o coração dos velhos diminuía de volume com a idade. A morte se dava quando “desaparecia”.
Ela também se debruça sobre a velhice dos 4 milhões de escravizados que chegaram ao Brasil. A maioria era composta por homens entre 15 e 40 anos. Apesar das condições degradantes em que viviam, havia os que envelheciam e acreditavam que aquele era um dom dos deuses – entendia-se que a longevidade se devia ao fato de a pessoa ter vivido de acordo com a lei dos ancestrais.
Na segunda metade do século XIX, os próprios protagonistas da História passaram a discorrer sobre sua idade. O abolicionista Joaquim Nabuco, por exemplo, via surgirem projetos do qual não participara: “resigno-me a ter tido a minha vez e que outros tenham a sua”. A chama do desejo sexual era vista como um risco para os idosos: “na velhice deve-se desconfiar das excitações fictícias produzidas por um regime estimulante ou pelos sonhos da imaginação; porquanto abreviam-se certamente os dias ou seriam ceifados pela morte súbita”.
Na virada para o século XX, com o fim da monarquia, ser velho tornou-se ainda mais incômodo. A velocidade imperava, com trens, bondes e os primeiros automóveis. O progresso era sinônimo de urbanização acelerada, culto aos esportes e da idealização do corpo. Cronistas definiam que a meia-idade era compreendida entre os 35 e 42 anos; a idade madura, dos 43 aos 49; o declínio, de 57 a 63; a velhice, de 64 a 70; na sequência, vinha a decrepitude.
Em 1920, a expectativa de vida era de 34,5 anos. “Durante quase 500 anos, os velhos eram apenas sobreviventes. No século XXI, a velhice parece ser uma conquista”, analisa. Priore encerra o livro dizendo, enquanto o escrevia, a dor no joelho sumira e sua mãe falecera. “Morreu à antiga, em casa, com a filha e o neto ao pé da cama. Exemplar, ela viveu intensamente todas as idades”. Que possamos todos fazer o mesmo.
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