A psicologia por trás do fascínio de crianças com Minecraft


Jogo em que pessoas têm liberdade para construir coisas é o mais vendido do mundo e até se tornou filme no cinema. Minecraft é o jogo de computador mais vendido do mundo e atrai pessoas de diversas idades
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Minecraft é o jogo de computador mais vendido no mundo e, recentemente, chegou às telas dos cinemas com Um Filme Minecraft. Não é à toa que as crianças não se cansam de jogá-lo.
O americano AJ Minotti tem três filhos, e todos eles adoram jogar Minecraft. Tanto as gêmeas de dez anos quanto o filho mais novo de seis passam horas construindo coisas com uma quantidade infinita de blocos virtuais disponíveis no jogo.
Minotti, que trabalha com marketing em Ohio, nos Estados Unidos, se impressiona, com frequência, com o que eles são capazes de criar.
“Pai, quero te mostrar uma coisa”, disse uma das filhas de Minotti recentemente, segurando a tela do Nintendo Switch.
O avatar dela estava diante de uma cachoeira. Assim que ela apertou um botão, a água parou, revelando a entrada de uma caverna. Lá dentro havia uma construção subterrânea cheia de luzes interativas e um painel que exibia os itens que ela tinha conseguido ao longo do jogo.
“Parecia uma mansão subterrânea”, lembra Minotti, maravilhado. “Eu fiquei super impressionado.”
A filha havia seguido alguns tutoriais no YouTube, mas também criou muitas coisas a partir das próprias ideias. “Me lembra de quando eu era uma criança e ficava o tempo todo mexendo no computador”, diz Minotti.
O sucesso do jogo Minecraft fez com que ele fosse adaptado para um filme de Holywood, lançado no início de abril
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Minecraft é um dos jogos mais populares de todos os tempos. Lançado em 2009, vendeu mais de 300 milhões de cópias até 2023. Assim como outros similares como Roblox e Terraria, atrai jogadores de todas as idades, desde crianças até adultos.
O jogo é capaz de prender a atenção das crianças por horas, algo cada vez mais raro hoje em dia, com tantas distrações. Mas alguns pais temem que o interesse dos filhos pelo Minecraft se torne uma obsessão, ou até mesmo um vício, já que muitas vezes é difícil tirá-los de frente da tela do computador.
A popularidade do Minecraft é tanta que deu origem a uma adaptação para o cinema: Um Filme Minecraft, estrelado por Jack Black e Jason Momoa, e lançado no início deste mês.
Segundo especialistas, é possível que haja fatores psicológicos, e até mesmo evolutivos, por trás do sucesso de Minecraft. Jogos como esse despertam um instinto natural que existe em todos nós, e que sustenta o progresso da espécie humana: o desejo de construir.
Instituto natural de construção
Se pensarmos bem, as crianças sempre gostaram de construir coisas. Seja castelos de areias e casas na árvore, seja objetos feitos com blocos de madeira, massinhas de modelar e peças de Lego.
O Minecraft é apenas uma nova versão desse tipo de brincadeira, só que no espaço digital.
Mas por que construir coisas é tão irresistível para muitas crianças?
“Todos os mamíferos brincam quando são jovens”, afirma Peter Gray, psicólogo que estuda formas de aprendizagem infantil no Boston College, em Massachussets, Estados Unidos. Animais predadores, por exemplo, brincam de pegar coisas. Já as presas brincam de se esquivar.
“Eles brincam com as habilidades que são mais importantes para o seu desenvolvimento, sobrevivência e capacidade de reprodução”, diz Gray.
Mas diferente de outros animais, os seres humanos devem grande parte da sua capacidade de sobrevivência à habilidade de construção — desde cabanas às ferramentas para caça. “Por isso, não é uma surpresa que a seleção natural tenha dotado crianças com um instinto forte para brincar de construir coisas”, pontua.
Gray também observa que as crianças brincam usando a linguagem e a imaginação, ou criam jogos baseados em regras e interação social — aparentemente como parte da preparação para a vida adulta.
O que as crianças escolhem construir enquanto brincam, e a forma como constroem, tende a refletir a cultura em que vivem.
“Não devemos nos surpreender com o fato de que as crianças hoje em dia estejam tão atraídas a brincar no computador, e isso não deveria nos preocupar”, afirma Gray.
“As crianças sabem, instintivamente, que essas são as habilidades que elas precisam desenvolver.”
A psicologia por trás do fascínio de crianças com Minecraft
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Julian Togelius, cientista da computação da Universidade de Nova York, tem notado esse ímpeto para construção surgindo no filho, que não tem nem três anos. Na creche, ele já constrói túneis para passar com trenzinhos e caminhões de brinquedo. Quando o filho de Togelius ficar um pouco mais velho, será difícil resistir aos computadores.
Segundo o cientista, os jogos estilo sandbox, como Minecraft, que dão aos jogadores liberdade para explorar a criatividade sem ter um objetivo específico, facilitam a interação e a execução de tarefas no computador.
“No mundo do Minecraft, criar algo é direto e simples”, explica. “É muito mais fácil do que escrever um código.”
Em outras palavras, jogos como esse satisfazem nosso desejo natural de construir, algo que os computadores, tradicionalmente, poderiam dificultar, principalmente para as crianças.
Mas a construção não é o único atrativo. Embora o modo sandbox permita que os jogadores criem com liberdade, há também o modo sobrevivência, em que o jogador é desafiado a enfrentar inimigos.
Minotti destaca ainda que há um lado social no jogo. Quando seus filhos não conseguem encontrar pessoalmente com os amigos ou primos, eles podem fazer isso online. “Acaba se tornando um espaço virtual de convivência.”
Talvez seja melhor pensar no Minecraft como um playground virtual, onde as crianças podem encontrar seu próprio nicho, uma vez que elas podem escolher entre uma grande variedade de atividades e estilos de jogo.
Personalidade e comportamento
Togelius estudou como o comportamento de jogadores em Minecraft revelam aspectos de suas personalidades. Ele argumenta que, devido à liberdade que é dada aos jogadores, é mais fácil para eles se expressarem no jogo do que em clássicos de fliperama como Asteroides, em que é preciso atirar contra rochas que caem do espaço.
Como parte do estudo, Togelius e seus colegas pediram a participantes adultos que respondessem um questionário sobre suas personalidades. Em seguida, compararam os resultados com a forma como cada participante jogava Minecraft. O comportamento dos participantes dentro do jogo apresentou correlação com certos traços de personalidade.
“A independência é fortemente vista no jogador que não termina a missão principal do jogo”, diz Togelius.
Além disso, pessoas que disseram carregar fortes valores familiares pareciam demonstrar isso, ainda que de forma inconsciente, dentro do jogo.
“Elas constroem casas e fortalezas com cercas.”
Apesar de Togelius não ter repetido o estudo com crianças, ele diz que não ficaria surpreso se as personalidades delas também se manifestassem no jogo.
O estudo ainda revelou que os jogadores de Minecraft tendem a se diferenciar da população em geral, sendo significativamente mais curiosos e menos motivados por desejos de vingança.
A diversidade de possibilidades nos jogos sandbox ajuda a garantir um apelo mais amplo, diz Bailey Brashears, psicóloga da Texas Tech University, que no ano passado publicou uma tese sobre como o Minecraft pode ser usado como uma ferramenta de pesquisa psicológica.
Brashears identificou cinco aspectos distintos oferecidos pelo jogo: a socialização, a oportunidade de se sentir competente através de um combate ou exploração, engenharia, criatividade, e a sobrevivência.
“A maioria dos jogos oferece apenas um ou dois desses elementos”, Brashears diz. “Você tem jogos que são mais focados no aspecto social e na sobrevivência, como o Fortnite”, explica.
A psicologia por trás do fascínio de crianças com Minecraft
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É claro que a quantidade de tempo que as crianças passam jogando Minecraft também gera preocupações mais amplas sobre o excesso de exposição às telas. Mas Minotti ressalta que os filhos também fazem outros tipos de atividades – eles amam jogar basquete, por exemplo.
Ainda assim, às vezes ele precisa lembrá-los de não jogar em excesso, e supervisionar os pedidos de amizade online. “Nós não deixamos eles livres para fazer o que querem na internet”, afirma.
A Sociedade Nacional para a Prevenção de Crueldade contra Crianças no Reino Unido, (NSPCC, sigla em inglês) publicou orientações sobre como manter as crianças seguras enquanto jogam Minecraft ou jogos desse tipo. Há relatos de casos sérios envolvendo abuso infantil e aliciamento de menores no Minecraft.
Recentemente, o chefe executivo da Roblox, outro tipo de jogo que permite às pessoas criarem, gerou um debate intenso ao dizer que os pais deveriam manter seus filhos longe das plataformas de jogos se eles estivessem preocupados com a exposição deles a conteúdos prejudiciais.
No geral, Minotti se sente confortável com o fato de os filhos passarem bastante tempo jogando Minecraft. Segundo ele, além de ter controle sobre o que os filhos estão fazendo, eles jogam usando a criatividade. “Eu vejo como um playground digital”, afirma.
Ferramenta de aprendizagem
O grande apelo do Minecraft também está na sua capacidade de conectar pessoas de novas formas.
Professores universitários, por exemplo, usaram o Minecraft para dar aulas online durante os primeiros anos da pandemia de Covid-19.
Na Irlanda, professores do Ensino Fundamental relataram ter tido sucesso em engajar os alunos nas aulas por meio plataforma Minecraft Education – uma versão do jogo feita para atividades escolares -, segundo uma pesquisa feita por Éadaoin Slattery, professora de Psicologia da Technlogical University of the Shannon Midwest.
Ela entrevistou 11 professores no país para um estudo financiado pela Microsoft, proprietária do Minecraft. E cita o exemplo de um professor que decidiu criar um jogo dentro do Minecraft Education para ajudar os alunos a aprender gaélico.
“Ele falou sobre como criar restaurantes e diferentes tipos de comida no Minecraft ajudaria os estudantes a aprender novas palavras”, disse.
Outras pesquisas apontam que o uso do Minecraft nas salas de aula pode aumentar a motivação dos alunos para tarefas escolares, resolução de problemas, leitura e escrita, entre outras habilidades.
Talvez as atividades educativas no Minecraft estejam aproveitando o chamado “estado de flow”, um alto nível de concentração e foco que os jogadores atingem quando estão imersos no jogo.
Esse fenômeno é associado a diferentes tipos de atividade, mas é tão comum entre fãs de Minecraft que se tornou um objeto de estudo. Isso ajuda entender por que as crianças ficam tão concentradas no jogo a ponto de ignorar tudo o que acontece ao redor.
A psicologia por trás do fascínio de crianças com Minecraft
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Mas há indícios de que o Minecraft não é atrativa para todos os públicos da mesma forma e pode apresentar uma desigualdade de gênero.
Um estudo na Austrália, que entrevistou mais de 700 pais, revelou que enquanto 54% dos meninos entre 3 e 12 anos jogam Minecraft, apenas 32% das meninas nessa faixa etária também fazem isso.
Os autores do estudo afirmam que é importante que jogos e plataformas online busquem engajar as meninas tanto quanto os meninos, uma vez que esses jogos ajudam as crianças a desenvolver habilidades digitais que elas vão precisar quando crescerem.
AJ Minoti, por exemplo, não está preocupado com qualquer dificuldade que as filhas possam ter para se adaptar ao mundo digital.
“O Minecraft é a praia delas”, ele afirma. “Sou eu que tenho que perguntar como se mexe nas coisas.”
E embora seus filhos também se divirtam construindo coisas com peças de lego, Minotti diz que não tem espaço para guardar tantos blocos em casa.
No fim das contas, o Minecraft oferece uma solução prática: “É como ter todas as peças de Lego que você poderia imaginar”, afirma.
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