De testes a golpes, brasileiros recebem 10 bilhões de ligações feitas por robôs por mês


Robocalls testam linhas ativas, irritam usuários e facilitam fraudes. Durante um mês, o Fantástico investigou empresas que fornecem programas para ligações automáticas. 23 mil ligações por segundo: o Fantástico investiga como funcionam os robôs programados para tirar você do sério
Quem nunca recebeu uma ligação indesejada? Pode ser uma oferta de telemarketing ou até algum tipo de golpe, com frases como “você ganhou na loteria, digite tal número pra confirmar que é você”.
Por mês, aproximadamente 20 bilhões de ligações são disparadas no Brasil. A metade – 10 bilhões – é realizada por robôs que são programados para discar.
São as chamadas “robocalls” ou “metralhadoras”: ligações automáticas feitas, por sistemas computadorizados, para um grande número de pessoas. Essas ligações duram no máximo seis segundos, antes de cair.
Essas chamadas são classificadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) como “ligações de curta duração”.
Na tela do celular de quem recebe uma robocall, normalmente aparece um número criado virtualmente, que não existe. Se a vítima tenta retornar a ligação, ouve uma gravação dizendo que o número digitado está incorreto.
‘Prova de vida’
A chamada rápida funciona como uma “prova de vida”. Se as ligações são atendidas, indicam que o dono da linha está vivo e é um cliente em potencial.
Com as informações fornecidas pelos robôs, o atendente de um call center não perde tempo telefonando para números inexistentes. E, no telemarketing, tempo é dinheiro.
Um ex-funcionário de uma central de atendimento de telemarketing, que prefere não se identificar, usava o método.
“Quando a gente recebe essa base telefônica, a gente tem que testar para saber se os clientes que estão ali são ativos ou não e, para isso, a gente usa um sistema de ligações robotizadas”, conta.
“Com base nisso, o sistema filtra quais são os melhores números para ligar e passa isso para dentro da central, onde os atendentes começam a realizar os atendimentos com os clientes.”
Ligações automáticas indesejadas, chamadas de “robocalls”
Fantástico
Brasileiros pararam de atender ligações
Essa é uma operação que irrita e prejudica milhões de brasileiros todos os dias.
A empresária Rosaura Brito, moradora de Santo Antônio da Patrulha (RS), se cadastrou no site “Não Me Perturbe”, da Anatel. Não adiantou. “Eu recebo de 30 a 40 chamadas por dia. Começa 8h01 da manhã”, diz ela.
“A gente está trabalhando, por exemplo, e o telefone não para de tocar. E se tu atendes, a ligação só cai. Se eu retorno a chamada, diz que o número não existe.”
A empresária, assim como muitos brasileiros, decidiu parar de atender números desconhecidos. Mas essa decisão pode gerar outro problema: e se for uma ligação importante?
A funcionária pública Gabriela Scholl, de Santana do Livramento (RS), não atendeu a um chamado e acabou perdendo um exame médico.
Ela diz que nem sabe em que momento recebeu a ligação. “Eu já poderia ter feito o exame e estar em tratamento”, lamenta.
O problema já atingiu até a central de transplantes da Santa Casa de Porto Alegre.
“A gente já teve pacientes que perderam a oportunidade de receber um órgão porque não atenderam o telefone”, conta a enfermeira Jaqueline Bica.
Antônio Kalil, diretor médico da Santa Casa de Porto Alegre, explica que existe um tempo mínimo de transplante para que o órgão possa ser utilizado. “Pode acabar acarretando a perda não só da oportunidade do transplante, mas também do órgão”, diz ele.
Quem está em busca de emprego precisa ficar atento. “Se nós ligamos e o profissional não atende, a gente tem que ir para o próximo. Vai perder a vaga”, afirma Silvana Ribeiro, gerente de recursos humanos.
Lista de contatos
Dados recentes da Anatel mostram que o disparo de ligações de curta duração, ou robocalls, aumentou no país.
Em janeiro e fevereiro deste ano foram quase 24 bilhões de ligações automáticas — o equivalente a 23 mil ligações por segundo. Um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2024.
Durante um mês, o Fantástico investigou empresas que fornecem programas para ligações automáticas.
A reportagem criou um negócio fictício que, em teoria, precisava usar o serviço de robocalls para aumentar as vendas e fez contato com diferentes empresas e sites na internet.
O representante de um site que vende dados pessoais – os chamados “mailings” – oferece uma lista de contatos. “Teste aí a lista, você vai entender que realmente está atualizadinha”, diz ele.
“É bem consistente mesmo. No mínimo, 100 mil, 150 mil registros, tranquilamente.”
A reportagem pediu que o vendedor enviasse uma amostra de cadastros de profissionais liberais. A amostra, com dados de quase 70 pessoas, foi enviada de graça, como tentativa de conquistar o novo cliente. O banco de dados tinha nomes, e-mails, endereços, profissões e, o mais importante, telefones.
O psicólogo Matheus Arend, de Guaíba (RS), apareceu na relação. A reportagem conseguiu falar com ele, que disse nunca ter autorizado o uso de seus dados.
“Eu me sinto bastante invadido, né? A questão de privacidade, principalmente. Um absurdo”, diz Arend.
Alteração ilegal de DDD
Depois de adquiridos, geralmente por empresas de telemarketing, os contatos são inseridos em um programa de computador. É a parte mais engenhosa do sistema.
Entramos em contato com uma empresa de Minas Gerais que desenvolve esses sistemas. A atendente explicou como funciona.
“Ele [o sistema] vai pegar a sua lista, todos os números, e vai ligar para cada um desses números. É disparo, tá? Em massa.”
A funcionária explica que o DDD de origem pode ser alterado. Por exemplo: uma empresa em São Paulo pode realizar uma ligação para o Rio Grande do Sul e, no visor de quem recebe a chamada, aparece o código 51, do estado gaúcho, e não o prefixo 11, de São Paulo.
“Para aparecer lá na tela da pessoa, no celular, que o DDD é da mesma região que está ligando. É mais provável de a pessoa atender uma ligação na região dela, do que, lá de São Paulo”, diz a atendente da empresa.
Especialistas alertam: alterar o DDD de uma ligação é ilegal.
“Isso pode caracterizar fraude eletrônica com pena de até oito anos de reclusão”, afirma José Milagre, advogado especialista em crimes cibernéticos.
“Você mentir para o consumidor, [dizendo] que está ligando do mesmo estado que ele, é uma prática desleal e abusiva, condenada pelo Código de Defesa do Consumidor”, afirma Luã Cruz, coordenador do programa de telecomunicações do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores).
E não é só o DDD que pode ser alterado. Os sistemas automatizados criam números aleatórios que não existem, e é por esse motivo que realizar o bloqueio das chamadas não resolverá o problema.
“[São] Centenas de milhares de números. Se eu ligar para você cem vezes, vai ser cem números diferentes”, afirma o vendedor de uma dessas empresas especializadas.
Quadrilhas usam chamadas para aplicar golpes
As robocalls não usam as redes de telefonia convencionais. Tudo é via internet, com programas específicos de computador.
Tudo isso também acaba sendo usado pelo crime organizado. Quadrilhas disparam mensagens para aplicar golpes.
“E são ligações muito autênticas, parecem reais, fazendo com que as vítimas não consigam discernir que estão caindo num golpe”, diz o advogado José Milagre.
“Muitos criminosos vão pedir, vão forçar você a dizer palavras como ‘sim’ e ‘não’, porque isso pode ser gravado e utilizado contra você em outros contratos. Então jamais diga nenhuma palavra, não interaja. Bloqueie esses números”, acrescenta.
Existem modelos prontos na internet para a gravação e envio de áudios.
Fizemos o teste em um site que utiliza inteligência artificial: criamos uma mensagem com uma voz robotizada oferecendo empréstimos e inserimos o número da produção para receber a chamada. Utilizamos a frase “se precisa de dinheiro extra, aperte 1 agora”.
A ligação foi realizada com a mensagem que colocamos.
Sistema produz relatório sobre as ligações
Sem saber que estava sendo gravada, a empresa desenvolvedora de programas de ligações automáticas de Minas Gerais, citada na reportagem, concordou em fazer uma simulação com a ferramenta.
Enviamos para o funcionário uma planilha com 15 números de telefone e distribuímos os aparelhos para jornalistas da RBS TV, em Porto Alegre. Convidamos o diretor executivo do Procon de Porto Alegre, Wambert Di Lorenzo, para participar da experiência.
Em menos de dez minutos, todos os 15 telefones tocaram — inclusive o do diretor do Procon.
A simulação produziu um relatório detalhado com a duração de cada chamada.
“Nós vamos abrir investigação no Procon para identificar esse fornecedor. Esse prestador de serviço comete um crime também, então vamos oficiar a Polícia Civil para que a gente possa tomar as medidas necessárias”, afirma Di Lorenzo.
“As empresas que operacionalizam [esses sistemas] deveriam ser responsabilizadas por violação ao Código de Defesa do Consumidor e à Lei Geral de Proteção de Dados”, diz Luã Cruz, do Idec.
O advogado José Milagre diz que alguns dos crimes que podem ser listados nessas práticas são falsidade ideológica, fraude eletrônica, crime contra as telecomunicações, associação criminosa e, dependendo do caso, lavagem de dinheiro.
O que diz a Anatel
A Anatel diz que segue trabalhando para ampliar o combate às ligações abusivas:
“Desde junho de 2022 até março deste ano, nós já reduzimos 222 bilhões de chamadas circulando nas redes de telecomunicações”, afirma Cristiana Camarate, superintendente de relações com consumidores da agência.
Ela acrescentou que uma nova medida, chamada “origem verificada”, também está sendo implementada.
“Quando o seu celular tocar, vai aparecer o nome e a logo da empresa e o motivo pelo qual ela está te ligando. Então, se o consumidor quiser atender naquele momento, ele pode atender com tranquilidade. Não será uma fraude”, explica.
Em nota, a Associação Brasileira de Telesserviços informou que suas associadas trabalham com informações fornecidas pelos clientes, não compram listas de dados e atuam para evitar ligações mudas ou insistentes.
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