Fraudes no INSS: aposentados da mesma família passam transtornos com descontos indevidos; ‘A gente se aperta para pagar’


Frentista e cuidadora idosos enfrentam problemas financeiros após aposentadoria. Empréstimos consignados e pagamentos não autorizados reduzem renda e deixam família sem saber a quem recorrer. Imagem de arquivo mostra sede do INSS na Avenida Mário Melo, no bairro de Santo Amaro, na área central do Recife
Reprodução/TV Globo
Morador do Ibura de Baixo, na Zona Sul do Recife, o frentista aposentado Mazonies Gomes da Silva, de 71 anos, é uma das vítimas dos descontos ilegais no pagamento feito pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), alvo de operação conjunta da Polícia Federal (PF) e da Controladoria Geral da União (CGU) na última semana e que levou à demissão do presidente do INSS, Alessandro Stefanutto.
De acordo com as investigações, os suspeitos cobravam mensalidades irregulares, descontadas dos benefícios de aposentados e pensionistas, sem a autorização deles.
✅ Receba as notícias do g1 PE no WhatsApp
No suposto esquema, as assinaturas dos beneficiários eram falsificadas para autorizar descontos no valor da aposentadoria. O dinheiro era repassado a associações, sindicatos e prestadores de serviços, que oferecem aos aposentados acesso a consultas, exames e ações sociais. Os desvios ocorreram entre 2019 e 2024 e podem chegar a R$ 6,3 bilhões, conforme as estimativas.
Sem saber ler e escrever, Mazonies conta com a ajuda do genro, o entregador de gás Jovane Lopes Ferreira, e da filha, Aline Maria, funcionária de uma creche, que resolvem as questões burocráticas para ele. E foi Jovane quem percebeu os descontos irregulares no pagamento do sogro, que afetam o valor final da aposentadoria que ele recebe de fato.
Fraude no INSS: valores serão devolvidos? Veja perguntas e respostas
Em entrevista ao g1, os três contaram uma sequência de problemas que Mazonies tem enfrentado desde que sofreu um acidente de trabalho que o fez perder um dedo da mão direita.
O aposentado trabalhou 27 anos com carteira assinada na função de frentista. Quando a aposentadoria começou a entrar, em 2017, a família estava passando por dificuldades financeiras e decidiu pegar um empréstimo consignado de R$ 5 mil numa financeira.
Desde então, começaram outros descontos no benefício que comprometem ainda mais a renda de Mazonies e da família.
“Foi pedido um empréstimo de R$ 5 mil para uma financeira, mas eles depositaram o dobro, o que dá uma parcela de R$ 300. A gente entrou em contato para devolver a metade do dinheiro porque ia ficar muito difícil pagar, mas disseram que não tinha como devolver. Tinha que ir à polícia, falar com o INSS, várias etapas. E a gente trabalha o dia todo; não tem como fazer isso. Então a gente se aperta para pagar. Ele [o sogro] paga a metade, e eu pago a outra”, explicou Jovane.
Frentista aposentado, Mazonies Gomes da Silva diz ter sofrido descontos indevidos do benefício que recebe do INSS
Acervo pessoal
Descontos indevidos
No início de 2024, a família percebeu mais um desconto no contracheque de Mazonies. Todos os meses o valor de R$ 86,90 era descontado em nome da empresa Paulista Serviços (PSERV) e ninguém sabia o porquê. Depois, os descontos passaram a ser de R$ 76,90 – em nome da mesma empresa.
Mesmo questionando, Jovane disse que demorou cerca de sete meses para o desconto ser suspenso.
“Só que no mesmo mês que parou de descontar os R$ 80, começaram a descontar R$ 40, que a gente não sabe o que é. Já faz quatro meses isso, que desconta esse mesmo valor. Eu não tive tempo ainda de ir resolver. Passo o dia todo entregando gás e fazendo outros serviços e Aline trabalha o dia todo na creche. Ele [o sogro] não tem como resolver sozinho, porque a gente até tem medo de pedir ajuda e ser enganado”, explicou o entregador de gás.
Os problemas da família não param por aí. A mãe de Jovane, a aposentada Rosilene Conceição Ferreira, de 68 anos, também enfrenta problemas financeiros provocados por empréstimos consignados e descontos irregulares no contracheque.
Rosilene é aposentada e deveria receber um salário-mínimo todos os meses. Entretanto, com o acúmulo de empréstimos consignados e os descontos de pagamentos que ela não sabe o que são, o que entra na conta são cerca de R$ 500 por mês. Para complementar a renda, ela precisa trabalhar como cuidadora, de segunda a sábado, com folga apenas aos domingos.
“Ela já teve muito aperreio com empréstimos. Chegou a um ponto em que pegava um e quando ofereciam outro, para pagar as contas, pegava outro. Colocava ‘um por cima do outro’. Com esses empréstimos e os descontos, hoje em dia ela recebe mais ou menos R$ 500 por mês. Por isso precisa trabalhar como cuidadora. Ela é aposentada, mas trabalha para sobreviver”, contou Jovane.
Empresas investigadas
A Paulista Serviços (PSERV) não aparece na lista de empresas até agora investigadas no esquema de fraude no INSS revelado na última semana, após investigações da Polícia Federal e da CGU.
As entidades suspeitas até o momento são:​
Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos (Ambec)
Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi/FS)
Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (AAPB)
Associação de Aposentados e Pensionistas Nacional (Aapen, antiga ABSP)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)
Universo Associação de Aposentados e Pensionistas dos Regimes Geral da Previdência Social (AAPPS Universo)
União Nacional de Auxílio aos Servidores Públicos (Unaspub)
Confederação Nacional de Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer)
Associação de Proteção e Defesa dos Direitos dos Aposentados e Pensionistas (Adpap Prev, antiga Acolher)
ABCB Clube de Benefícios/Amar Brasil
Caixa de Assistência dos Aposentados e Pensionistas do INSS (Caap)
O g1 entrou em contato com a Paulista Serviços (PSERV) por e-mail, perguntando quais são os serviços prestados pela empresa; a que se referem os descontos efetuados nas aposentadorias, nos valores de R$ 86,90 e R$ 76,90; e por que são descontados se os aposentados não autorizaram?
A PSERV respondeu ao e-mail dizendo que:
“É um agente de recebimentos e pagamentos e atua, desde 2012, por meio de débitos automáticos em contas correntes, administração de cheques pré-datados e boletos para empresas de diversos segmentos, tais como: instituições financeiras, fintechs, seguradoras, imobiliárias, academias de ginásticas, entre outros”;
Não pode encaminhar dados e documentos de um titular a terceiros, em virtude das disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD);
Para fornecer informações precisa de autorização assinada pelo titular do contracheque, “com documento, ou que ele próprio entre em contato através do tel 0800 878 2103 (atendimento em dias úteis, das 9h às 17h)”.
Como identificar fraudes
Ao g1, o advogado previdenciário João Davi Ramos explicou que esse tipo de fraude costuma acontecer quando o aposentado ou pensionista procura uma instituição financeira para pegar um empréstimo.
Segundo o especialista, a primeira atitude que se deve tomar ao reconhecer um desconto indevido é solicitar o contrato da operação de crédito. O documento deve estar no aplicativo Meu INSS. Caso não esteja na plataforma, é preciso pedir uma cópia ao banco ou instituição financeira onde o empréstimo foi tomado.
“A pessoa vai lá, faz o empréstimo e, no ato do empréstimo, tem ali uma pessoa com má intenção e joga para uma associação para fazer um desconto. […] Chega um pensionista ou aposentado para fazer um empréstimo, já aproveita e encaixa um desconto de associação. Faz um decalque da assinatura, para ficar parecido, e joga [no sistema]. Por isso que é importante você ter acesso ao contrato tanto do empréstimo como da associação”, afirmou.
O advogado disse, ainda, que, ao notificar que está sendo vítima de uma fraude, o segurado pode pedir o bloqueio do desconto irregular e também recusar adesão a qualquer uma dessas associações.
“Se, futuramente, você quiser contrato com alguma, vai lá e libera. Quando você bloqueia só aquele valor específico, deixa em aberto para que outras associações, ou até mesmo aquela de novo, coloque outro tipo de contrato, ainda que fraudulento”, explicou João Davi Ramos.
De acordo com o advogado previdenciário, após constatar a irregularidade, o aposentado deve abrir uma ação na Justiça e buscar a responsabilização da empresa responsável pelo contrato ou do INSS.
“Se a assinatura foi falsificada e a associação enviou ao INSS para começar os descontos, a responsabilidade é da empresa. Agora, se você observa que está havendo omissão do INSS, que está sendo ‘conivente’ por falta de fiscalização e cuidado, entra também a responsabilidade do INSS”, informou João Davi Ramos.
Veja, no vídeo abaixo, mais detalhes sobre o esquema de fraude no INSS investigado pela Polícia Federal:
Especialista fala sobre o esquema de fraudes no INSS que resultou na demissão do presidente do órgão
VÍDEOS: mais vistos de Pernambuco nos últimos 7 dias
Bookmark the permalink.