‘Não conhecia rúcula, salsa, couve’: como a agricultura mudou vidas em um deserto alimentar do Brasil


Na série ‘PF: prato do futuro’, o g1 conta histórias de moradores de Betânia do Piauí, onde a pobreza e a seca extrema sempre dificultaram o acesso a comida saudável. Prato do Futuro: Quintais mudam vidas no sertão
“Antigamente, a gente comia só o feijão com o arroz. Agora, nós temos as verduras pra comer: tem o coentro, tem a abóbora, a batata… tem tudo aqui.”
“A gente passou a conhecer a rúcula, a salsa, a couve. A gente não conhecia esses alimentos.”
“Eu tinha, assim, tipo uma depressão. Para falar a verdade, eu já tomei o remédio faixa preta, mas, depois do quintal produtivo, não tomei mais.”
Os relatos acima são de agricultoras que o g1 conheceu em março, no pequeno município de Betânia do Piauí (PI), com 6 mil habitantes e que fica a 500 km da capital Teresina.
Os quintais produtivos que elas citam são plantações de hortaliças que desafiam um passado de secas extremas, pobreza e fome. Veja no vídeo acima.
É contraditório pensar que há tanta gente sem acesso a comida no Brasil, que é um grande produtor e exportador de alimentos.
Mas esse sempre foi um cenário comum em lugares como Betânia.
Em 2010, o município tinha o 3º pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Piauí, segundo a ONU, que ainda não atualizou o dado.
Quem vive na região conta que políticas sociais melhoraram um pouco as condições de vida nos últimos 20 anos, mas muita gente ainda come menos do que deveria, e com pouca diversidade.
➡️ Este é o terceiro episódio da série “PF: prato do futuro”, onde o g1 mostra soluções para desafios da produção de alimentos no Brasil.
Faz só 5 anos que Betânia começou a ter acesso a frutas, verduras e legumes frescos. E tudo por causa da iniciativa de um paulistano que foi parar na região em 2012, como voluntário.
“Quando eu cheguei aqui, fiquei uns três anos sem comer alface, porque não se produzia”, conta José Carlos Brito, que lá virou o Zé da Água.
Há 10 anos, ele fundou a ONG Instituto Novo Sertão em Betânia. Em 2019, criou um projeto de plantio de hortaliças orgânicas, sem agrotóxicos, e com pouco uso de água, chamado Quintais Produtivos.
A iniciativa vem melhorando a alimentação e, de quebra, aumentando a renda de 45 famílias daquela cidade.
A seguir, entenda como a agricultura familiar pode ajudar a acabar com a contradição de um país que produz muita comida e ainda lida com a fome. E quais são os desafios pela frente.
Desertos alimentares
Cerca de 25 milhões de brasileiros viviam em desertos alimentares entre 2023 e 2024, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social. Desses, 6,7 milhões tinham baixa renda ou estavam em situação de pobreza.
O termo surgiu em 1995, na Escócia. Nesses desertos alimentares – que podem ser tanto urbanos como rurais – sacolões, hortifrutis, feiras e mercearias são raros ou não existem.
No caso de Betânia do Piauí, o centro de produção de hortaliças mais próximo fica em outro estado, na cidade de Petrolina (PE), a 220 km de distância.
O que verdura tem a ver com segurança alimentar?
Segundo a ONU, insegurança alimentar é não ter acesso regular a alimentos seguros e nutritivos em uma quantidade suficiente para uma vida saudável, seja por falta de dinheiro ou de oferta. E isso inclui acesso a alimentos essenciais, como frutas, verduras, legumes, cereais e grãos.
🎧 Ouça abaixo o que diz a presidente do Consea sobre isso:

“[Quando cheguei a Betânia], vi famílias que davam comida ultraprocessada para as crianças como a única fonte de alimentação do dia: biscoito recheado ou biscoito de sal. Então, era uma realidade muito comum, principalmente na zona rural”, conta Zé da Água.
O fundador do Instituto Fome Zero José Graziano conta que a falta de acesso a uma alimentação saudável é um dos principais problemas da insegurança alimentar entre as faixas de renda mais pobres do Brasil.
Isso porque o consumo de ultraprocessados tem sido relacionado ao desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e obesidade.
Graziano foi diretor da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação entre 2012 e 2019. E criou o Fome Zero, implementado no primeiro mandato do presidente Lula, em 2003.
Ele vê no incentivo à agricultura familiar, formada por pequenos produtores, um caminho importante para garantir nutrição e diversidade alimentar à população.
Afinal, esse modelo agrícola é responsável por 62% da produção de hortaliças no Brasil, segundo o IBGE.
🎧 Graziano aponta outras vantagens da agricultura familiar, ouça abaixo:

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Graziano destaca que o consumo de hortaliças no Brasil não passa de um terço do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 400 gramas por pessoa por dia.
“Investir na agricultura familiar é justamente investir no que estamos precisando. Se há alimentos que faltam produzir são frutas, verduras e legumes. Não falta produzir arroz e feijão”, diz Graziano.
Não é só plantar: tem que encurtar distâncias
Mas, para que a agricultura familiar consiga ocupar os desertos, é preciso encurtar distâncias, criando pontes para que os produtos colhidos cheguem até os centros consumidores.
Segundo Gomes, é comum que ONGs e órgãos assistência técnica rural tomem a frente do transporte de alimentos da agricultura familiar.
Foi o que o g1 viu em Betânia do Piauí. Hoje, a ONG Instituto Novo Sertão é a responsável por coletar os produtos dos agricultores de casa em casa, nas áreas rurais, para levá-los à feira, que fica no centro da cidade.
A feira, batizada de Quitanda dos Quintais, também foi criada pela ONG.
Brasil é um grande produtor de alimentos, mas convive com a insegurança alimentar
O que faz a agricultura familiar dar certo?
“Vamos pensar um pouco na realidade do agricultor familiar. Ele tem uma produção diversificada, mas não consegue plantar todos os alimentos que precisa para abastecer a geladeira”, acrescenta.
Além disso, é importante que a renda obtida por meio da atividade agrícola garanta dinheiro para outras necessidades.
“Antes dos quintais, a gente tinha que comprar o cheiro verde, cebola, tomate, alface. E hoje a gente não precisa. A gente tem para o consumo de casa e para vender na comunidade”, conta a agricultora Geneilza de Sousa e Silva Agricultora, de Betânia.
“Aí melhorou bastante a renda da gente. Dá também para comprar a gasolina, o pão”, acrescenta.
Hoje, a Quitanda dos Quintais fatura de R$ 4 mil a R$ 5 mil por mês, e a renda é dividida de acordo com que cada agricultor produz.
Em média, cada produtor tira em torno de R$ 300 a R$ 500 por mês. E R$ 0,50 de cada produto fica com a ONG para custear o transporte.
Agricultora Ana Leide Carvalho da Silva superou uma depressão após a Quitanda dos Quintais.
Gustavo Wanderley/g1
Mas fortalecer a agricultura familiar em nível nacional?
Políticas públicas como a merenda escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foram justamente elaborados para criar canais de venda para pequenos agricultores, explica Palmeira, da Rede Penssan.
Por meio do PAA, por exemplo, agricultores familiares vendem seus alimentos para o governo federal, estados e municípios, que, por sua vez, distribuem para escolas, hospitais e pessoas em vulnerabilidade social.
Hoje, produtores de Betânia também participam desse programa.
Mas o PAA passou por fortes cortes no orçamento entre 2016 e 2022, e vem sendo retomado desde 2023 (veja abaixo).
O governo federal prevê aumentar o número de agricultores familiares beneficiados pelo programa de 85 mil, em 2025, para 95 mil, em 2027, segundo o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan).
O Plansan foi aprovado em março e contempla uma série de estratégias para reduzir a fome no Brasil.
Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) afirma que é importante apoiar a agricultura familiar, uma vez que ela é formada por pequenos produtores.
“Nas políticas públicas, a agricultura familiar precisa de crédito mais barato e um melhor seguro [rural], por quê? Porque ela tem menos poder de barganha com os bancos, menos poder de barganha com a indústria”, afirma.
Fome e falta de água
Um outro problema do município do Piauí sempre foi a escassez de água, uma condição que é muito relacionada a quadros de pobreza e fome em zonas rurais de semiárido, diz Palmeira.
Segundo o IBGE, a proporção de domicílios particulares com insegurança alimentar moderada ou grave nas zonas rurais foi de 12,7% em 2023, contra 8,9% nas áreas urbanas.
“Quando a gente fala da superação da insegurança alimentar numa região rural do semiárido, a gente fala de levar água, de criar condições de irrigação da terra”, afirma Palmeira.
No caso de Betânia do Piauí, o Instituto Novo Sertão teve que realizar pesquisas e consultorias junto a universidades e à Embrapa para entender as melhores técnicas de plantio de hortaliças com pouco uso da água.
Vários métodos foram implementados de acordo com a estrutura dos quintais de cada agricultor, conta Simara Coelho, coordenadora da ONG.
Como perfuração de poços artesianos, construção de cisternas-calçadão, irrigação por pote de barro, além de sistemas de reuso de águas cinzas para plantio de frutas (saiba detalhes no vídeo acima).

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