Grupo de amigos autistas se reúne para trocar experiências e enfrentar dificuldades do diagnóstico tardio: ‘Aprendendo uns com os outros’


Após descobrirem o autismo, já na vida adulta, eles se conheceram na fila de um consultório, em Bauru (SP), e criaram o grupo de apoio para lidar com os desafios do diagnóstico. Grupo de amigos com TEA se reúne para conversar, trocar experiências e se apoiar em Bauru
Reprodução/TV TEM
Periodicamente, um grupo de amigos de Bauru (SP) se reúne em prol de um único objetivo: se ajudar. Eles possuem duas características em comum: foram diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e descobriram a condição apenas na fase adulta.
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Eles se conheceram na fila do consultório onde fazem o acompanhamento, viraram grandes amigos e, sempre que conseguem, se juntam para comer pizza e trocar experiências.
Quem começou com os encontros foi Silvia Helena. Aposentada, Silvia tem 57 anos e descobriu há pouco mais de dois anos que, para sua surpresa, possui autismo moderado. Sua descoberta é recente, mas sua relação com a condição vem desde 2009, quando fundou a Associação dos Familiares, Amigos e Pais dos Autistas de Bauru (AFAPAB) por causa do filho.
Nícolas, filho de Silvia, era autista não-verbal. Ela precisava pagar equoterapia, fonoaudiologia, acompanhamento psicológico, natação e terapia para ele. Isso porque, na época, não havia alternativas gratuitas. Além disso, percebeu que seu filho não era estimulado na escola.
Pensando em reunir todos esses serviços em um só lugar e de maneira gratuita, ela decidiu fundar a associação. Quando Nícolas morreu, em 2018, Silvia começou a fazer terapia para superar o luto. Foi nas sessões que sua psiquiatra percebeu que ela poderia ter o Transtorno do Espectro Autista e, assim, pediu para que ela começasse a fazer os testes.
“A psiquiatra já notava que eu tinha muitos rituais. São umas coisas que a gente tem que é difícil explicar, mas, se você não fizer daquele jeito, se faltar um detalhe, parece que aquilo te incomoda o dia inteiro”, explica.
Com ajuda da irmã, que recordava as histórias e os momentos de sua infância, passou pelo processo de testagem. Com o resultado em mãos, começou a olhar para si mesma e a se entender melhor. “A partir do diagnóstico, minha vida mudou”, conta.
Recomeço
Silvia teve o diagnóstico de autismo depois dos 50 anos em Bauru
Reprodução/TV TEM
Descobrir o diagnóstico na fase adulta não foi fácil de lidar. Mas, olhando para trás, a aposentada mostra como driblou as dificuldades da vida sem perceber, passando por atitudes consideradas simples e rotineiras, como dirigir, nadar e ter relações interpessoais.
Agora, a única coisa que quer é se superar a cada dia.
“Se meu filho conseguia, eu também vou conseguir. Tenho 57 anos, mas ainda tenho uma vida inteira pela frente. Tem gente que vive 100 anos ou passa disso. Vou ficar sentada? Não.”
Hoje, ela faz questão de passar pelos especialistas e trabalhar tudo o que lhe causou obstáculos na vida. Nesses dois anos, já consegue ter o paladar mais apurado, nadar, ter mais amigos, falar em público, e afirma alegremente que irá para a autoescola no ano que vem.
A escolha de ter dado continuidade às terapias após a descoberta foi crucial para hoje conseguir dar passos que antes não conseguia. “A terapia ajuda a gente a fazer coisas que achava não serem possíveis”, ressalta.
As amizades feitas nesse período reafirmam a importância das terapias, tanto para a vida de Sílvia, quanto para as dos amigos. Não à toa, eles sempre se reúnem na casa dela para trocar boas risadas.
Apoio do grupo
Luan também descobriu já adulto o diagnóstico de TEA
Reprodução/TV TEM
Luan de Jesus é empresário e também foi o professor que alfabetizou Nícolas na AFAPAB. Apesar de trabalhar com crianças autistas, não sabia que era um adulto com o espectro do autismo.
“Quando você recebe o diagnóstico na vida adulta, você fica no lugar de ‘talvez não seja isso’, porque você passou a vida inteira com a condição”, declara.
Luan conta que, apesar de nunca ter imaginado que pudesse estar no espectro, sabia que tinha algo que não estava adequado no seu desenvolvimento. “Fui uma pessoa que abandonou a escola no 8º ano e fiquei um ano afastado. Quando voltei, não escrevia mais, abandonei a escrita. Na faculdade, tive vários problemas”, discorre.
Nos encontros do grupo de apoio, ele fala como foi passar uma vida inteira sem o diagnóstico e chegar até aqui. Esses momentos são preciosos, porque, por meio deles, Luan e os demais podem entender tudo o que passaram.
Essa socialização é importante na medida que cria um espaço onde as pessoas neurodivergentes autistas consigam ser elas mesmas, tratar de assuntos que fazem parte das suas vivências e fazer trocas.
“Há uma troca de experiências, de técnicas e de estratégias. A gente acaba aprendendo uns com os outros como lidar melhor com certas situações”, diz o empresário.
Eles também estão sempre ampliando o grupo e a percepção que as pessoas têm sobre os autistas. Afinal, há autistas em todos os lugares, sendo grupos plurais e heterogêneos. “Os encontros são principalmente para a gente se apoiar”, destaca o professor.
Mesmo com todo esse apoio, não é nada fácil passar pelo diagnóstico e seguir com o acompanhamento. Além de ser difícil conseguir um especialista para adultos em Bauru, o processo é muito caro.
“Fazer a busca por um diagnóstico tardio exige uma dispensa financeira muito grande, porque você vai fazer uma avaliação específica, que não é barata”, afirma.
Luan procurou ajuda na faculdade. Até chegar ao diagnóstico exato de autismo, precisou passar por uma série de outros diagnósticos. Com a escassez de profissionais capacitados para essa demanda, relata ter passado por muitas dificuldades.
“O meu primeiro diagnóstico foi depressão; depois, TDAH. Fui passando por várias medicações e diagnósticos errôneos. A cada tentativa de novo medicamento, era aquela frustração que atrapalhava a minha vida.”
“O diagnóstico tardio é complicado, porque a pessoa passa por um histórico de sofrimento e negligência. Até a terapia muda se o diagnóstico muda. Passei por psicólogos com abordagens que não funcionavam para uma pessoa autista”, completa.
Apesar de tudo, Luan sabia que tais percalços precisavam ser ultrapassados, pois o diagnóstico era importante para a garantia dos seus direitos. A partir deles, poderia lutar por melhores condições de vida não só para si, mas também para outras pessoas.
“Hoje, nós temos a necessidade de usarmos acessórios, como o colar de girassol, de quebra-cabeça e o colar do símbolo do infinito. A gente precisa porque a sociedade ainda não consegue compreender a neurodivergência em sua totalidade. Nós nos desenvolvemos de forma muito ímpar.”
Fazer a diferença
Quem também entende desse olhar da sociedade é Gabriela dos Santos, estudante de engenharia civil que também faz parte do grupo. Ela relata ter sido tratada muitas vezes como criança, apesar de ser considerada uma pessoa com altas habilidades. Mas não para por aí. O atendimento preferencial, que era para ser seu apoio, chega a se tornar um pesadelo.
Disse que, quando vai para uma fila, por não aparentar e a todo momento tentar esconder sua condição atípica, as pessoas não percebem que ela está sobrecarregada, porque é algo mais interno.
“A pessoa pergunta porquê estou ali. Já gritaram no meio do estabelecimento que eu não tinha cara de autista. E eu estava identificada”, conta.
Gabriela escreve livros para o público infantil em Bauru
Reprodução/TV TEM
Outras situações também a incomodam, como é o caso de entrevista de emprego. Ela comenta que já jogaram seu currículo fora na sua frente quando descobriram que ela é autista.
O seu maior desejo é que a sociedade entenda que, por mais que ela possua algumas dificuldades, não é nada que não possa ser adaptado.
“Eu tenho hipersensibilidade auditiva, mas, se eu colocar um adaptador de ruído, fica tudo bem. Também tenho hipersensibilidade ao toque, mas no trabalho não vou ficar abraçando todo mundo.”
Foi justamente após uma situação de preconceito que ela decidiu fazer a diferença na sociedade. Começou a gravar vídeos falando sobre seu dia a dia e a escrever livros infantis sobre o autismo, TDAH, capacitismo e como aceitar o diagnóstico.
O autismo
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta o processo cognitivo das coisas. Neste mês é realizada a campanha Abril Azul de conscientização do TEA.
O nível 1 não possui grandes dificuldades intelectuais e nem baixos níveis cognitivos. No nível 2 já aparecem algumas comorbidades e comprometimentos cognitivo e funcional. Já no 3, os casos são mais complexos, dependendo de um auxílio integral para com a pessoa.
Segundo o analista comportamental Wesley Becker, uma das coisas mais importantes para quem tem autismo na fase adulta é a área da habilidade social, pois ela envolve a interação com o outro e a interação dele com o ambiente onde está inserido.
“Há a dificuldade de estabelecer uma conversa com início, meio e fim, e estabelecer o contato visual. A pessoa também prefere ficar na zona de conforto, que é se afastar dos outros”, explica o analista.
Para Wesley, pensar na habilidade social não é somente pensar no diálogo, mas também no acesso aos espaços da comunidade, seja uma escola, uma praça ou um evento. E a família é de extrema importância para tais questões, porque é ela que acompanha a pessoa da infância até a velhice.
“Quanto mais instrumentalizada essa familiar estiver, mais ela vai conseguir auxiliar o seu parente”, detalha.
*Colaborou sob supervisão de Mariana Bonora
**Com informações de Gabriel Sato/TV TEM
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