Papa nunca erra? O que são dogmas, as ‘verdades inquestionáveis’ do catolicismo que será liderado por Leão 14


A lista oficial da Igreja Católica tem 43 dogmas, alguns mais recentes, outros, basilares à fé católica, como o conceito de que Deus seria uma única entidade sem princípio nem fim e com três pessoas — a Santíssima Trindade — e a crença de que Maria concebeu mantendo sua virgindade. Entre os dogmas mais conhecidos está a crença de que é o próprio Jesus que se faz presente no momento da eucaristia.
Getty Images via BBC
O novo papa da Igreja Católica foi escolhido na tarde desta quinta-feira (8/5), no Vaticano. O cardeal americano Robert Prevost será o novo líder do catolicismo, tendo escolhido o nome papal Leão 14.
A decisão foi tomada após a quarta votação do conclave, e a fumaça branca que simboliza a escolha do novo papa pôde ser vista saindo da chaminé da Basílica de São Pedro, sinalizando ao mundo o fim da deliberação.
A escolha foi feita pelos 133 cardeais reunidos na Capela Sistina, em seu segundo dia de conclave. Durante esse período, os cardeais permaneceram completamente isolados, sem qualquer comunicação com o mundo exterior, até a definição do novo líder da Igreja.
Este é o terceiro conclave realizado no século 21 — o primeiro foi em 2005, que resultou na eleição de Bento 16, e o segundo em 2013, quando foi escolhido o papa Francisco.
Com mais de 2 mil anos de história, a Igreja Católica é marcada por rituais e tradições profundamente enraizadas — entre elas, os dogmas: 43 sentenças consideradas verdades absolutas de fé para os católicos, que permanecem inalteradas independentemente de quem esteja à frente do papado.
O que são os dogmas
A esta altura dos acontecimentos, é bastante provável que você tenha lido algo sobre Pedro, aquele homem simples que, acredita-se, tenha sido um pescador galileu e se tornado um dos primeiros seguidores de Jesus, ser considerado o primeiro papa da Igreja. E como os tempos são de sucessão no comando do Vaticano, pode ser que a expressão “infalibilidade papal” tenha saltado aos seus olhos.
Esses dois pontos listados fazem parte de uma lista de verdades imutáveis e inquestionáveis do catolicismo: os dogmas. São 43 sentenças consideradas como verdades de fé por aqueles que seguem a Igreja Católica.
“Um dogma é uma verdade de fé que a Igreja conhece por meio da revelação divina, ou seja, por meio da sagrada escritura ou da tradição viva, que é aquele processo pelo qual a Igreja, ao longo do tempo, progride na compreensão da mensagem bíblica sob a assistência do Espírito Santo”, explica à BBC News Brasil o teólogo Pasquale Bua, padre diocesano em Roma e professor na Pontifícia Universidade Urbaniana, também em Roma.
O termo vem do grego dokein, que significa “parecer”. No âmbito religioso, é uma espécie de decreto ou prescrição legal. “É muito comum nos depararmos com a definição de dogma como ‘verdade de fé’, como ‘revelação imutável’. Mas o Catecismo da Igreja diz que se trata de uma luz que ilumina a nossa caminhada”, diz à BBC News Brasil o teólogo Raylson Araujo, pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Nesse sentido, dogma é aquilo que está no conteúdo da fé e da tradição das sagradas escrituras, mas que, vez ou outra, não está tão explícito. Então a Igreja vem, por meio do magistério, nos ajudar a compreender isso”, conceitua ele.
O filósofo e teólogo Gabriel Frade comenta com a BBC News Brasil que, ao longo dos tempos, o termo dogma acabou adquirindo o significado de decreto ou doutrina.
“Nossos dicionários chegam mesmo a atribuir a essa palavra o sentido de ‘ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível’, definição muito próxima do que o catolicismo entende por dogma”, salienta ele.
O catecismo aborda a questão em três parágrafos, do 88 ao 90. E, segundo Frade, “prefere uma linguagem mais palatável, mais próxima às pessoas comuns, ao dizer que ‘os dogmas são luzes no caminho da fé dos cristãos e são verdades que iluminam e tornam seguro esse caminhar'”.
“Dessa forma, em uma visão mais aderente à percepção atual, o catecismo busca sublinhar as implicações dos dogmas na vida concreta de fé dos fiéis, libertando da falsa ideia de que estes seriam uma simples imposição eclesiástica, com fórmulas a serem decoradas”, afirma ele.
Atualmente, lista tem 43 dogmas
Essas “verdades” inquestionáveis foram sendo compiladas e oficializadas conforme a Igreja Católica foi se institucionalizando. Hoje os 43 dogmas estão divididos em oito categorias: aqueles sobre Deus, os sobre Jesus Cristo, os sobre a criação do mundo, os sobre o ser humano, os marianos, os sobre o papa e a Igreja, os sobre os sacramentos, e os sobre as últimas coisas.
Nem sempre a institucionalização deles escapa de polêmicas. “Em relação ao dogma da Imaculada Conceição de Maria há um dado interessante: não obstante as objeções de muitos teólogos, que não desejavam ver esse dogma proclamado pela Igreja em vista de algumas dificuldades de caráter teológico, a insistência do conjunto dos fiéis, especialmente leigos, em afirmar essa verdade é que foi amadurecendo na consciência da Igreja que essa devoção era, na verdade, um dogma de fé”, ressalta Frade. Esse dogma foi instituído em 1854, pelo papa Pio 9º (1792-1878).
Alguns dogmas são basilares à fé cristã-católica. Os conceitos de que Deus seria uma única entidade — fazendo do cristianismo uma fé monoteísta —, sem princípio nem fim e com três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo, a Santíssima Trindade — remontam a entendimentos muito antigos, oriundos de discussões teológicas realizadas por volta do século 4º. São também antigas assim a crença de que Maria, a mãe de Jesus, concebeu mantendo sua virgindade.
Já o dogma mais recentemente incorporado a essa listagem é do século passado. “É o dogma da Assunção da Virgem Maria, ou seja, de que a Maria foi elevada aos céus de corpo e alma. A Igreja definiu isso em 1º de novembro de 1950 [no pontificado de Pio 12 [(1876-1958)]”, esclarece à BBC News Brasil o historiador e filósofo Raphael Tonon, gestor do Núcleo de Teologia do Instituto de Formação e Educação de Campinas e membro da equipe técnica do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Campinas.
Segundo Araujo, a necessidade da definição dos dogmas se deu por conta dos questionamentos. “Era preciso afirmar algo contra as dúvidas. Os dogmas surgiram para refutar, não no sentido de combater, necessariamente, mas para responder e diferenciar aquilo que é considerado um ensinamento correto, ortodoxo, daquilo que é a heresia, um ensinamento que foge dessa interpretação correta segundo a Igreja”, diz.
Entre os dogmas mais conhecidos estão a crença de que é o próprio Jesus que se faz presente no momento da eucaristia, ou seja, que durante a celebração, a hóstia e o vinho ali não estão simplesmente representando a memória de Cristo. O termo utilizado pela Igreja Católica é transubstanciação.
As definições de céu, purgatório e inferno também são dogmas, bem como a crença do fim do mundo, da ressurreição dos mortos no último dia e do juízo universal. A ideia de que o ser humano é formado por corpo e alma também constitui um dos dogmas.
“A Igreja não tem o poder de criar dogmas, mas apenas de definir essas verdades de fé de maneira solene. Não significa que a Igreja está inventando, mas que ela apenas está aprovando, endossando, aquilo que sempre foi crido e ensinado e, em algum momento, começou a ser atacado, questionado”, explica Tonon. “Assim, por uma necessidade de clareza, o dogma é instituído.”
Tonon argumenta que os dogmas “são sempre definidos por necessidade”, ou seja, abordando questões inerentes a uma “verdade de fé que está sendo atacada ou sobre a qual pairam dúvidas”.
Isso significa que a lista atual não é definitiva — novos dogmas podem ser incorporados a ela no futuro. “Não se trata de uma lista fechada, pois, com o passar do tempo, a Igreja, ao avançar gradualmente na compreensão da verdade revelada, pode reconhecer novos dogmas”, explica Bua. “Reconhecer não significa inventá-los do nada, mas tomar consciência deles e buscar dar-lhes uma formulação adequada.”
Araujo explica que um dogma não pode ser excluído, mas faz parte da vida da Igreja que ele seja “reinterpretado”. Um exemplo é a ideia da infalibilidade papal, ou seja, o entendimento de que o papa “quando fala ex catedra” não erra.
“O Concílio Vaticano 2º [que ocorreu nos anos 1960] revisou e ampliou a leitura desse dogma”, pontua o pesquisador. Agora se observa que essa infalibilidade se baseia em ações do papa “em comunhão com seu colégio cardinalício e com os bispos”.
“Um dogma, em sentido estrito, não pode ser modificado em seu núcleo essencial, mas pode ser esclarecido, complementado e reformulado à luz de novas linguagens e contextos: o dogma é imutável, mas não a sua expressão linguística”, ensina o padre Bua.
“Consequentemente, o fiel é certamente chamado a acolher o dogma com o assentimento da vontade e do intelecto, mas se tiver razões fundadas pode, ao mesmo tempo, desejar que alguns de seus aspectos sejam mais bem esclarecidos e que seu conteúdo seja expresso de forma diferente, por exemplo, de modo mais fiel à escritura ou mais compreensível à mentalidade do homem contemporâneo.”
Para o professor Tonon, é justamente o dogma da infalibilidade papal — instituído no século 19 pelo papa Pio 9º — que “fecha a questão” sobre a impossibilidade de derrubar algum dogma. Em outras palavras, se o papa não falha, não erra, o que ele faz não pode ser alterado por outro na sequência. “O papa o define de modo infalível. Isso é definitivo”, frisa.
Em 1990 a Comissão Teológica Internacional, órgão do Vaticano, publicou um documento chamado ‘A Interpretação dos Dogmas’. Nele, afirma que as chamadas fórmulas dogmáticas têm valor perene, não podem ser mudadas. “Justamente por serem formulações ligadas à manifestação de Deus”, diz Frade.
“Logo já se intui que um dogma não pode ser excluído do conjunto da doutrina da Igreja.”
“O que muda, diz o documento, é a nossa compreensão sobre eles, visto que nosso conhecimento é limitado e está em constante desenvolvimento”, acrescenta Frade.
Quem não acredita está praticando heresia
Todo católico que diz não acreditar em um ou mais dogmas deixa de ser visto, pela instituição, como um católico. “Mas é claro que os dogmas podem ser questionados no sentido de um teólogo contribuindo com a Igreja, em um processo de amadurecimento. Mas se o religioso ensinar o contrário ou aquilo que não diz o dogma, aí provavelmente ele terá sua atenção chamada e, caso não se retrate, pode ser entendido como herege”, afirma Araujo.
“Se houver um questionamento para conhecê-lo melhor, para entender as razões que o fundamentam, para estudá-lo, para se aproximar dele, não há problema nenhum. Os cursos de teologia fazem isso”, pontua Tonon. “Mas no âmbito da fé, se um católico questionar um dogma ele estará questionando uma verdade divinamente revelada. Em última instância, está duvidando do próprio Deus.”
De acordo com o especialista, este fiel deve então ser encaminhado para um padre ou um bispo e orientado. Caso rejeite a retratação, a Igreja pode excomungá-lo.
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