Santa Catarina, um Estado Norte-Americano

Praia em Santa Catarina, região Sul do BrasilPixabay

Na história recente do Brasil, poucos estados , se é que algum , conseguiu conjugar de forma tão eficiente prosperidade econômica, coesão social e gestão pública como Santa Catarina. Embora ocupe apenas 1,1% do território nacional, o estado tornou-se uma exceção no mapa nacional: o segundo mais competitivo do país depois de São Paulo, o mais seguro, e, líder em indicadores de desenvolvimento humano, educação básica e geração de empregos industriais per capita além de grande exportador . Santa Catarina aparece, aos olhos desatentos, como uma anomalia — mas é, na verdade, fruto de uma construção histórica muito particular. Ao mesmo tempo , o Estado de Santa Catarina foi identificado na radicalização política como um estado frio e de direita? Qual a verdade?

É nesse ponto que o “excepcionalismo catarinense” se revela: não apenas como fenômeno estatístico ou econômico, mas como a expressão de um etos civilizatório forjado ao longo de séculos, sob a influência direta de um projeto imperial inspirado no modelo americano e conduzido por Dom Pedro II.

A geopolítica silenciosa de Dom Pedro II

Pouco conhecido do público brasileiro, Dom Pedro II foi um dos monarcas mais respeitado pelos Estados Unidos, uma jovem república , no século XIX. Durante sua visita em 1876, por ocasião do centenário da independência americana, o imperador foi recebido com honras por Ulysses S. Grant, então presidente dos EUA, e chegou a receber votos simbólicos para a presidência norte-americana — uma curiosidade que ilustra a admiração que despertava.

Mas o interesse do imperador ia além da diplomacia: Dom Pedro II via nos EUA um modelo alternativo de desenvolvimento, baseado na liberdade econômica, na educação pública, na propriedade privada familiar e no trabalho livre. O excepcionalismo norte-americano , contado por Alexis de Tocqueville em Democracia na América , era para ele, um contraponto ao latifúndio escravocrata dominante no nordeste e no centro-sul do Brasil. E foi no sul do território nacional — então praticamente um vazio demográfico — que ele resolveu aplicar uma política deliberada de ocupação com imigrantes europeus, isentos da herança colonial escravista, capazes de constituir um novo modelo social e econômico.

O Sul seria, portanto, uma tentativa de um Brasil alternativo — e, no centro dele, Santa Catarina. Foi assim que , mediante companhias de colonização se repetiu o modelo de ocupação das treze primeiras colônias norte-americanas, do qual , na minha opinião , Santa Catarina e o nordeste do Rio Grande do Sul virariam emulações muito próprias : colônias do tipo norte-americanas nos trópicos . A Rua das Palmeiras em Blumenau tem esse rosto , de casarões coloniais circundando palmeiras imperiais .

O nascimento do “Brasil Novo”

A colonização do sul do Brasil com imigrantes primeiramente açorianos , depois italianos, alemāes , eslavos e nórdicos não foi casual. Era uma estratégia de defesa territorial, sobretudo frente a potenciais ameaças de países como a Espanha e a Alemanha, com interesses na região. Mas foi também uma tentativa de criar um “Brasil Novo”, como chamou Darcy Ribeiro. Um Brasil que não nascia das senzalas e do latifúndio, mas da pequena propriedade familiar, da ética protestante, do trabalho assalariado e da cultura associativista. A miscigenação racial do Sul se daria de forma diferente misturando europeus novos aos de origem Ibérica e açoriana , indígenas , negros e caboclos .

Santa Catarina tornou-se, nesse contexto, o principal núcleo desse novo Brasil. Suas colônias não escravocratas, organizadas em cooperativas e pautadas por um espírito comunitário, geraram um modelo de produção diferenciado, centrado em pequenas e médias empresas industriais e agrícolas. Ao contrário do Sudeste, onde o Estado historicamente dominava a lógica econômica, em Santa Catarina o protagonismo sempre foi do cidadão e do empreendedor. É o estado com o maior número de empresas per-capita.

Esse padrão cultural e econômico que também ocorria em boas partes do Rio Grande do Sul, algumas partes do Paraná , mais adiante, a partir do Rio Grande orientou-se para o Centro-Oeste , Norte e Oeste da Bahia — um fenômeno que podemos chamar de “Brasil Novíssimo”.

O Brasil Novíssimo: o agro como continuação do Sul

A expansão do agronegócio brasileiro no século XX, especialmente no Centro-Oeste, é muitas vezes contada como resultado da modernização técnica e da ocupação territorial. Mas há outro fator decisivo: a migração sulista. Agricultores e empresários rurais vindos do Sul , levaram para o Centro-Oeste não só sementes e tratores, mas um modo de vida baseado na mesma ética de trabalho, cooperação e produtividade. De muitas maneiras , a conquista do nosso centro-Oeste repete a saga das colônias originais em direção ao oeste norte-americano , e ali ela se encontra com brasileiros de todas as partes . Eles , no passado , com seus carroções e cowboys , e nós , mais tarde com grandes caminhões em estradas de muita lama .

Esse modelo de “colonização interna” , liderado por gaúchos , catauchos e paranaenses , se consolidou com o avanço da soja, da integração lavoura-pecuária, da mecanização e do cooperativismo, fazendo do Centro-Oeste a nova fronteira produtiva do Brasil. Mas seu DNA continua sendo bastante sulista — e, no epicentro dele forjado pelas colônias imaginadas por D. Pedro II.

Uma cultura política mal compreendida

Ao contrário da caricatura que muitas vezes se impõe a Santa Catarina como um reduto “conservador”, o estado teve uma trajetória política plural e, em certo sentido, progressista. Desde a redemocratização, votou majoritariamente no MDB — partido de oposição ao regime militar — e permitiu que o PT governasse suas principais cidades em ao menos um ciclo eleitoral: Florianópolis, Joinville, Blumenau, Criciúma, Chapecó, Concórdia, entre outras.

Mais do que conservadorismo ideológico, o que sempre prevaleceu em Santa Catarina foi uma cultura de resultados, pragmática, avessa a ideologias vazias e centralismos burocráticos. A guinada à direita no pós-2013 — muitas vezes interpretada como radicalização — é, antes, um reflexo do cansaço do catarinense com os escândalos de corrupção, a ausência de retorno fiscal e o sentimento recorrente de ser explorado por Brasília. Até então , Santa Catarina era um Estado eleitor da social democracia reformista do PSDB .

De fato, Santa Catarina contribui nove vezes mais ao orçamento da União do que recebe de volta. É o segundo estado que mais perde na balança fiscal federativa, atrás apenas de São Paulo. Em Brasília , o mote é : Santa Catarina e São Paulo não precisam .

O estado que cresceu sem mercado interno

Santa Catarina também é exceção por ter construído uma economia voltada à exportação e à integração logística , — e não dependente do mercado consumidor local. Com seis portos, uma base industrial diversificada, forte presença do setor tecnológico (notadamente em Florianópolis e Joinville) e um turismo que vai da neve à praia, o estado soube usar sua pequena escala como vantagem comparativa. Balneário Camboriú e Itapema passam a imagem de Dubais brasileiras , e logo sofrem ataques por parecerem bem sucedidas com prédios de até 500 metros de altura . Essa é a verdade destes 12 km de praia , com paz e segurança pública – mas são um pedaço pequeno de um litoral de 600 kms de praias naturais , boas para surfe e veraneio . Somente o Parque Estadual do Acaraí tem mais de 20 km de praia que são reserva natural . E a própria capital , Florianópolis , conta com mais de 60 porcento de seu território composto de reservas ambientais – ao mesmo tempo sendo a capital nacional das start-ups . Digo isso para contrapor os clichês que não resumem a ópera . O estado é um dos lugares mais diversos do planeta , segundo o estudo da Oxford Economics para o WTTTC , não se encaixa na reduzida e superficial da opinião pública nacional .

Marcas nacionais e internacionais nasceram em solo catarinense: WEG, Hering, Karsten, Tupy, Aurora , Tigre, Perdigão, Sadia. E mesmo com baixo crescimento vegetativo da população, o estado se mantém dinâmico graças à imigração interna e externa — especialmente de gaúchos , paranaenses , paraenses e venezuelanos e haitianos.

Limites ao crescimento

Apesar de todos esses avanços, Santa Catarina ainda esbarra em gargalos. A infraestrutura viária e aeroportuária , bem como de saneamento, são insuficientes . Faltam investimentos em rodovias estruturantes, integração ferroviária e conectividade aérea regional. O estado também carece de mais recursos federais para fazer frente ao crescimento urbano e às demandas sociais crescentes. Previsão do IBGE antevê que Santa Catarina poderá ultrapassar o Rio Grande do Sul em PIB e população em 2046 , e passar o pujante Paraná em 2056 . O que por si só elevará o teste às qualidades do excepcionalismo catarinense à homogeneização do Brasil , como disse o Professor Ignacy Sachs , de Paris .

Além disso, enfrenta o desafio da sucessão geracional nas pequenas e médias empresas, muitas ainda familiares, e a necessidade de se adaptar à revolução digital e à nova economia verde.

Uma lição para o Brasil

Santa Catarina representa, talvez, sem ufanismo , em boa parte , o Brasil que poderíamos ser — e não conseguimos. Um país que valoriza o trabalho, fomenta a produção, cobra resultados dos gestores públicos, respeita o mérito e cultiva a coesão social. Um “país “ que não espera do Estado uma solução mágica, mas tampouco tolera ser abandonado por ele. Não excluo que o que acabo de dizer seja mal-interpretado pelo radicalismo e pelos complexos que habitam parte da alma nacional , “ o complexo de vira-lata “ como entendido por Nelson Rodrigues, um gênio do Brasil , e de alma lindamente carioca .

O excepcionalismo catarinense não é arrogância — é coerência histórica. E parte importante da alma nacional. É o resultado de séculos de construção institucional, cultural e produtiva. É uma herança, mas também um projeto vivo. Suas causalidades não são mensuradas , como quase nada é na história da vida econômica e social do Brasil . Mais fácil tem sido dizer : isso não é Brasil .

Num Brasil fragmentado entre clientelismos, dependência estatal e instabilidade política, Santa Catarina se mantém como um farol, admirado , na prática por quem conhece seus resultados sócio-econômicos. E como dizia Dom Pedro II — esse brasileiro que teve votos para presidente dos EUA —, “governar é educar”. Eu diria também , depois de séculos , que governar começa com o “aprender “ . O Brasil tem muitas lições de sucesso , para quem se interessa por sucesso , e Santa Catarina é uma delas . Aproveitar ou não é outra questão .

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