Haenyeo, as lendárias mergulhadoras coreanas com vantagem genética que pode ajudar a tratar doenças


Ícones da ilha de Jeju, muitas dessas mulheres hoje têm mais de 60 anos e continuam em atividade, mergulhando mais de 15 metros só com a força dos pulmões. Nas águas frias do Mar do Leste (Mar do Japão), na ilha sul-coreana de Jeju, mergulhadoras desafiam os limites do corpo humano.
BBC
Nas águas frias do Mar do Leste (Mar do Japão), na ilha sul-coreana de Jeju, mergulhadoras desafiam os limites do corpo humano.
Munidas de uma faca e da força dos pulmões, as haenyeo (“mulheres do mar” em coreano) submergem até 15 metros de profundidade em busca de moluscos e outras criaturas marinhas.
A maioria herdou das mães esse ofício, que vem sendo transmitido entre gerações — as primeiras referências documentadas datam do século 17.
Além de ser um símbolo de identidade e resistência reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial, as haenyeo nos últimos anos também têm dado contribuição importante para a ciência.
Pesquisadores investigam se o estilo de vida das mergulhadoras pode ter contribuído para a seleção genética de variantes que podem ajudar a tratar doenças crônicas como hipertensão e derrame.
A história das haenyeo
A tradição de mergulhar em Jeju para coletar moluscos — de abalones a polvos —, ouriços-do-mar, pepinos-do-mar e algas marinhas tem mais de quatro séculos de história documentada, remontando a escritos como A Topografia de Jeju, de 1629.
O mergulho era visto originalmente como uma atividade masculina, mas no século 17 as mulheres assumiram essa função por necessidade.
Com os homens ausentes devido à guerra, migração ou pesca em alto mar, foram elas que passaram a se encarregar de prover para a família, mergulhando no oceano para coletar o sustento diário.
Assim nasceram as haenyeo, que moldaram não apenas o modo de vida da ilha, mas também sua estrutura social: uma sociedade matriarcal única.
Em algumas comunidades insulares, os homens eram responsáveis ​​pelos cuidados com as crianças, enquanto as mulheres se encarregavam do trabalho remunerado.
Tradições como o pagamento de um dote pelo noivo ou a celebração do nascimento de meninas em detrimento dos meninos refletem essa ordem social, na qual o ofício das haenyeo conferia respeito e autonomia.
O trabalho é duro e perigoso: os turnos podem durar entre cinco e sete horas, mesmo no inverno, e os mergulhos atingem profundidades de até 15 ou 20 metros.
A tecnologia lhes proporcionou melhores condições de trabalho — as roupas de algodão, por exemplo, foram substituídas por macacões de neoprene e foram incorporadas máscaras e nadadeiras —, mas elas ainda estão expostas a riscos extremos, desde doenças de descompressão e enroscamento em redes de pesca até encontros com tubarões.
Alguns perderam parcial ou completamente a audição devido a mudanças de pressão.
A genética especial
Por gerações, as haenyeo treinaram seus corpos para atuar sob condições extremas, mergulhando a profundidades de mais de 15 metros só com o ar dos pulmões, suportando temperaturas abaixo de zero no inverno e prendendo a respiração por minutos.
A tradição centenária acabou tendo impacto no DNA dessas mulheres, conforme apontou uma pesquisa realizada por uma equipe internacional de cientistas.
Diana Aguilar Gómez, especialista em genética populacional treinada na Universidade da Califórnia, Berkeley, liderou a análise genética de um estudo que começou em 2019 e revelou adaptações fisiológicas e genéticas únicas na comunidade das haenyeo.
Seu trabalho, ela explicou à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC), consistiu em analisar sequências de DNA em busca de genes associados a características físicas específicas na população haenyeo.
O projeto, conduzido em colaboração com pesquisadores da Universidade de Utah, da Universidade Nacional de Seul e da Universidade de Copenhague, comparou três grupos: haenyeo ativas de Jeju, mulheres que não mergulham na ilha e mulheres de outros lugares.
Características fisiológicas como frequência cardíaca, pressão arterial e tamanho do baço foram analisadas, e experimentos conhecidos como “mergulhos simulados” foram conduzidos para replicar as condições da atividade das mergulhadoras sem colocar as demais participantes, muitas das quais idosas, em risco.
“Colocamos as mulheres em frente a uma tigela de água fria, submergindo suas cabeças por um minuto, e então medimos como seus corpos reagiram”, explica Aguilar.
Esses experimentos nos permitiram observar como o reflexo de mergulho, que reduz a frequência cardíaca para conservar oxigênio, foi ativado com muito maior intensidade nas haenyeo.
“Observamos que a frequência cardíaca delas diminuiu muito mais do que a de mulheres não treinadas. Isso é uma adaptação adquirida, um produto do treinamento”, diz a cientista.
A surpresa veio na análise do DNA: “Encontramos uma região reguladora de um gene que acreditamos que reduz a pressão arterial”, observa Aguilar.
Essa descoberta é especialmente relevante porque as haenyeo, mesmo as grávidas, não pararam de mergulhar.
“O mergulho pode aumentar a pressão arterial, o que aumenta o risco de pré-eclâmpsia. Acreditamos que essa variante genética pode ter um efeito protetor nesses casos”, revela.
A equipe também identificou uma segunda mutação relacionada à resistência ao frio, que pode proteger contra a hipotermia.
“Essas mulheres historicamente mergulhavam o ano inteiro com trajes de algodão, até mesmo no inverno. Essa variante genética pode ter sido selecionada porque as ajudou a sobreviver nessas condições”, explica a pesquisadora.
Segundo Aguilar, essa adaptação pode ter se consolidado há mais de mil anos.
“Imagine duas mulheres grávidas em uma comunidade de mergulho. Uma tem a variante genética protetora e a outra não. Ao longo das gerações, é provável que aquelas com essa mutação sobrevivam mais, e isso se reflete no DNA coletivo da população”, ela ilustra.
Além do interesse antropológico, a pesquisadora afirma que as descobertas têm potencial médico global: “Essas variantes são encontradas em frequências diferentes em populações ao redor do mundo. Elas podem ser relevantes para pessoas com hipertensão ou problemas vasculares, não apenas para mergulhadores ou gestantes”.
O conhecimento desses genes poderá, no futuro, servir de base para o desenvolvimento de tratamentos.
Aguilar acredita que “eles podem se tornar alvos terapêuticos. Ainda não sabemos como isso será aplicado, mas sabemos que algo útil pode sair disso”.
O trabalho da equipe foi publicado após anos de colaboração internacional e, para a cientista, registrar todo esse esforço em um periódico científico é apenas o primeiro passo: “A ciência funciona como um sistema de Lego. Nós juntamos as peças e outros constroem em cima. Mas o certo é que as haenyeo, além de serem um patrimônio cultural, agora também fornecem insights valiosos para a medicina do futuro”, conclui.
O perigo de extinção
Durante décadas, a profissão foi vista como uma atividade de classes baixas, e muitas haenyeo cresceram sem acesso à educação formal, vendendo seus pescados em mercados desde muito jovens.
Isso mudou nos últimos anos, com seu reconhecimento institucional e social, especialmente desde sua inclusão na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco.
O governo sul-coreano tem oferecido ajuda financeira, direitos exclusivos de pesca e promovido a criação de museus e escolas com o intuito de preservar a tradição.
O impacto dessas medidas, contudo, é limitado: poucas mulheres jovens estão dispostas a viver sob o risco constante e o isolamento de uma existência dedicada ao mar.
Apenas algumas dezenas vêm se tornando mergulhadoras, e muitas que abraçam a atividade só a realizam esporadicamente ou em meio período.
A população de haenyeo na Ilha de Jeju declinou vertiginosamente nas últimas décadas, de mais de 30 mil nos anos 1960 a menos de 3 mil. Hoje, mais de 80% delas têm mais de 60 anos.
Isso se explica, em parte, pela transformação econômica pela qual Jeju passou nas últimas décadas.
A ilha, que durante séculos dependeu da pesca e da agricultura, voltou-se para o turismo de massa e para o setor serviços, proporcionando oportunidades de trabalho mais confortáveis ​​e melhor remuneradas do que o mergulho.
Como resultado, cada vez menos meninas estão seguindo os passos de suas mães haenyeo, e o conhecimento tradicional que antes era passado de geração em geração corre o risco de ser perdido.
Algumas iniciativas, no entanto, encontraram novas maneiras de manter vivo o espírito das mulheres do mar.
Um exemplo é o restaurante Pyeongdae Sunggae Guksu, na costa nordeste de Jeju, fundado por duas mergulhadoras, que serve pratos tradicionais feitos exclusivamente com produtos pescados por elas mesmas, como os cobiçados ouriços-do-mar.
O local se tornou um pequeno santuário culinário que celebra a cultura haenyeo e, ao mesmo tempo, as ajuda a complementar a renda.
Outro raio de esperança está fora de Jeju, na ilha de Geoje, no sul do país.
Sohee Jin, de 32 anos, deixou a movimentada cidade de Busan para se tornar mergulhadora e, após um ano de aprendizado não remunerado, ela literalmente entrou de cabeça na atividade.
Hoje, ela não apenas pesca abalones e ouriços-do-mar. Documentando sua vida nas redes sociais, virou influenciadora, tem aparecido em programas de TV e chegou a atuar em um filme.
Com a amiga Jungmin Woo, também mergulhadora, ela lidera um pequeno grupo de jovens mulheres haenyeo determinadas a preservar a tradição, adaptando-a ao século 21.
Elas sabem que não escolheram um caminho fácil: além dos riscos da própria atividade, lidam com redes de pesca abandonadas, pescadores ilegais e os efeitos das mudanças climáticas nos ecossistemas marinhos.
Mesmo assim, mergulham o ano todo, têm orgulho da profissão e encontram no mar uma liberdade que dizem que não trocariam pela rotina tediosa de um escritório.
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