Creche alvo de investigação por maus-tratos no Acre funcionava há 10 anos sem alvará; donos são indiciados


Polícia Civil indiciou Helena Araújo Mendes e Francisco Chagas Batista Mendes por maus-tratos contra menores de 14 anos. Investigação aponta ainda falta de documentação da Vigilância Sanitária, nutricionista para montar o cardápio das crianças e outras irregularidades. Creche alvo de investigação por maus-tratos no Acre funcionava há 10 anos sem alvará
A Creche Recreação Kids, em Rio Branco, funcionava desde 2014 de forma irregular. A instituição não tem alvará de funcionamento, documentação da Vigilância Sanitária e não disponibilizava de nutricionista para montar o cardápio das crianças, além de outras questões.
A informação foi repassada pela delegada de Polícia Civil responsável pelo caso, Carla Fabíola Coutinho, à Rede Amazônica Acre.
A Polícia Civil indiciou nessa quinta-feira (22), por maus-tratos contra menores de 14 anos, Helena Araújo Mendes e Francisco Chagas Batista Mendes, proprietários da creche. Um grupo de mães buscou o Ministério Público Estadual (MP-AC) para denunciar a diretora da instituição em dezembro do ano passado.
O g1 tentou contato com o casal, mas não obteve retorno.
Após as denúncias, a 1ª e 3ª Promotoria de Justiça Especializada de Defesa da Criança e do Adolescente instaurou uma ação civil pública e entrou com pedido de liminar na Justiça pedindo a suspensão das atividades na instituição. Vídeos, fotos e áudios mostram uma série de situações de violência física e psicológica as quais as crianças eram submetidas.
Equipes da Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima (Decav), responsável pela investigação, fizeram diligências no local, ouviram testemunhas, crianças maiores de quatro anos matriculadas na creche e interrogaram os investigados.
“A investigações já foram completadas, todas as vítimas que puderam ser ouvidas foram na delegacia. As crianças menores, foram também as mães dos alunos, fomos ao local dos fatos para verificar in loco o que estava ocorrendo. Os investigados foram interrogados e já fizemos a conclusão do inquérito, os proprietários foram judiciados e o inquérito foi relatado e encaminhado”, destacou a delegada.
Vídeo mostra criança amarrada com fralda em cadeira de plástico de creche no Acre
Em depoimento, a delegada afirmou que os suspeitos alegaram que achavam normal o tratamento dado às crianças. “Achavam que era uma forma de tratamento sendo que era revestido de maus-tratos, era uma forma agressiva de estar ensinando a criança, o que é totalmente condenável”, destacou.
À polícia, os pais falaram que perceberam que os filhos não avançavam nos estudos, que demoravam a aprender a falar e alguns demostravam medo quando o nome de Helena Mendes era citado.
“Achavam estranho a criança ter uma idade avançada, seis, sete anos e não conseguir falar direito, não conseguir ler, nem escrever e, após retirar o aluno da creche, rapidamente se desenvolvia. Alguns pais também relatavam que chegavam na casa e quando falavam o nome da proprietária as crianças ficavam em choque, em pânico, começavam a chorar, tensas e também não queriam voltar para a creche”, lamentou.
O processo foi concluído e encaminhado para a Justiça. Caso sejam condenados, o casal pode pegar até dois anos de prisão. A delegada aconselhou os pais a ficarem atentos ao comportamento dos filhos, conversarem com as crianças e observar as mudanças.
“A criança, mesmo que seja muito pequena de 3, 4 anos, fala. A criança consegue se comunicar com os pais, então, se a criança está tensa, nervosa, não consegue dormir direito, chora, não quer ir para a creche, não quer ir para o local onde você está levando, é sempre importante estar verificando isso. É muito provável que esteja acontecendo algo com essa criança, porque ela está tão traumatizada assim”, orientou.
Creche “Recreação Kids” funcionava há dez anos sem alvará e documentação da Vigilância Sanitária
Andryo Amaral/Rede Amazônica
Denúncias
A equipe da Rede Amazônica Acre conversou com uma ex-funcionária da Creche Recreação Kids, no bairro Jorge Lavocat, em Rio Branco, fechada pela Justiça na última segunda-feira (19).
À reportagem, a ex-servidora relatou que presenciou cenas chocantes praticadas pela dona da instituição, Helena Mendes, como comparar crianças com Transtorno do Espectro Autista a demônios. Em contato novamente com a empresária Helena Mendes, uma mulher atendeu a ligação e informou que ela não se encontrava no momento. A atendente alegou que ia repassar o recado e checar se algum advogado vai se posicionar em nome da empresária.
O caso foi divulgado na última segunda pelo órgão estadual, que conseguiu a liminar na 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Rio Branco.
Imagens mostram crianças dormindo no chão em creche no Acre
Arquivo Pessoal
O g1 obteve, com exclusividade, imagens gravadas por funcionárias da creche que revelam uma criança amarrada em uma cadeira de plástico com uma fralda e chorando bastante. Outras imagens mostram crianças dormindo no chão dos cômodos ou em cima de pedaços de pano espalhados pela sala; alunos sentados em cadeiras de plástico sozinhos, que segundo a denúncia, teriam sido colocados nessa posição como forma de castigo.
Uma das mães que buscou o MP-AC e conseguiu os registros dos maus-tratos com ex-funcionários conversou com o g1 e contou como desconfiou que a filha poderia estar sendo maltratada na creche.
Agressão começava na oração
Ainda segundo a ex-funcionária, algumas agressões foram presenciadas em um momento de oração, quando a dona da creche reunia as crianças para um rito religioso. Segundo ela, os maus-tratos na creche são comentados no bairro entre os moradores, contudo, ninguém nunca teve coragem de denunciar.
Ao chegar em casa e relatar um episódio que presenciou, a ex-funcionária relembrou que a irmã dela falou que ela ia descobrir se o que falavam no bairro eram apenas boatos ou não. “Aí eu descobri realmente, porque lá começa o dia com uma roda de oração. Quando se inicia essa roda de oração já se inicia a agressão porque as crianças menores não querem ficar, não querem dar a mãozinha pro outro coleguinha, aí ela já começa a bater dali”, relembrou.
Mesmo presenciando essas situações, a mulher explicou que contou apenas para parentes em casa. Ela afirmou que chegou a desconfiar de algo quando foi para a entrevista de emprego, em julho de 2023, e disse que gostava muito de crianças.
“Ela olhou pra mim e disse assim: mas, eu não preciso de pessoas que gostem de criança aqui não. Preciso de pessoas que tenham pulso firme, não preciso de funcionário que fique babando criança, meu foco é arranjar pessoas que tenham pulso firme com eles”, relatou.
FOTOS: Funcionários acusam dona de creche de maus-tratos à crianças no Acre
A mulher disse também que, na época, havia cerca de 28 crianças na instituição. Certa vez, segundo a denunciante, ela diz que questionou uma das colaboradoras mais antigas da creche que, inclusive, é prima da ex-nora de Helena Mendes, sobre a diretora bater na boca do neto dela.
“Eu disse: [nome da funcionária] isso não te dói, não? Porque já dói com a gente que não é nada da gente, ele é teu primo, não te doeu não? Ela só balançou a cabeça que sim e saiu de perto da gente. Ela é muito fechada com as outras funcionárias”, destacou.
Ainda segundo a mulher, uma colega de trabalhou pediu demissão quando teria presenciado a diretora bater na boca do neto e deixar o menino sangrando. O menino tinha dois anos na época.
“Foi a gota d’água porque ela já via as coisas, a gente já via. Ela ficou bem abalada, chorando. Eu também, pensei em sair nesse período, com três meses. Mas, fiquei pensando. A primeira situação que eu vi foi com a [nome do bebê], uma criança de um ano. Na hora do almoço, eu e a funcionária mais antiga de lá, que tem nove anos, ela dava comida para os maiores, dos dois aos quatro anos, e eu dava comida para os bebês de um aninho”, acrescentou.
Funcionários de creche no Acre expõem dona por maus-tratos à crianças
Arquivo Pessoal
Durante uma dessas refeições, a ex-funcionária diz que uma das meninas mordeu o dedo da coleguinha e foram separadas. Ela relembrou que conversou com a menina que tinha mordido, pediu para ela não fazer mais aquilo e a outra menina começou a chorar.
A diretora teria ouvido e foi até as garotas questionar o que tinha acontecido. “Eu não esperava essa reação dela. Ela veio e deu uma mãozada na boca da [nome da criança]. Quando eu olhei, tava sangrando. Meu Deus do céu! A gente ficou assustada, eu peguei uma toalhinha e fui limpar a menina. Aí a senhora lá dizia assim, a dona: ‘Isso aí é pra você aprender, pra você não tá mordendo que nem cachorro’. Essa foi a primeira situação”, recordou.
Após presenciar essa agressão, ela diz que a outra cuidadora saiu do trabalho. Mesmo querendo também pedir demissão, a mulher afirma que preferiu ficar e tirar fotos e juntar provas do que acontecia na creche.
“Eu pensei: a gente tem que fazer alguma coisa. Aí aconteceu isso com o neto dela, a [nome da ex-funcionária] não aguentou e saiu. Aí a gente ficou se comunicando por telefone. Ela disse: ‘amiga, se eu encontrar alguma mãe por aí, eu vou falar. Aí eu falei, você pode falar que eu confirmo'”, concluiu.
MP-AC investiga
O MP destacou, por meio de nota, que a ação tramita na 2ª Vara da Infância e da Juventude e que a liminar, deferida na ação civil pública, determinou a interrupção imediata das atividades. A ação é assinada pelos promotores de Justiça Abelardo Townes de Castro Júnior e Almir Fernandes Branco.
Ao receber a denúncia, as equipes fizeram diligências com a rede de proteção e representantes do Núcleo de Apoio Técnico Especializada da Criança e do Adolescente (Nateca), de assistência social do município, 2º Conselho Tutelar, dos centros de Referência de Assistência Social (Cras)e Especializado de Assistência Social (Creas).
“Diante dos fatos relatados pelas testemunhas, depoimentos de pais e ex-funcionários da unidade escolar, bem como, fotos, áudios, e gravações, foi realizada também uma diligência com investigação prévia que resultou no ajuizamento da ação civil pública diante de todos os fatos apresentados”, diz parte da nota.
Colaborou Andryo Amaral, da Rede Amazônica Acre.
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