Desaparecido político mais jovem do país e estudante torturado até a morte: mapa conta história de sorocabanos vítimas da ditadura


Das 434 vítimas da ditadura no Brasil, duas nasceram em Sorocaba (SP) e uma delas passou a maior parte da vida nesta cidade. O g1 traz a histórias desses importantes personagens políticos, que recebem certidões de óbito retificadas. Marcos Antônio Dias Baptista e Alexandre Vannucchi Leme nasceram em Sorocaba, no interior de SP, e foram vítimas da repressão militar
Arte g1
“Causa da morte: violenta, causada pelo Estado brasileiro”. A descrição, agora retificada, substitui a incerteza antes impressa nas certidões de óbitos das vítimas da ditadura militar pelo sentimento de justiça aos familiares de Marcos Dias Baptista e Alexandre Vannucchi Leme, sorocabanos mortos pelo regime autoritário que comandou o Brasil entre 1964 e 1985.
📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp
O reconhecimento do Estado como culpado pelos 434 mortos e desaparecidos políticos foi determinado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por unanimidade em dezembro de 2024, após analisar uma proposta apresentada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
As antigas certidões de óbitos, entregues em 1995 após a lei nº 9.140/1995, omitiam a data e causa da morte e apenas reconheciam como mortos os desaparecidos por envolvimento em atividades políticas no intervalo entre de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988.
Certidão mudada após a regulamentação do CNJ
Reprodução/TV Globo
Com a nova medida, as retificações serão baseadas nas informações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, que identificou 202 mortos e outros 232 desaparecidos durante o período de repressão no país.
Dessas 434 vítimas, duas nasceram em Sorocaba (SP) e uma delas passou a maior parte da vida nesta cidade. Conheça a história dessas personagens políticas:

Desaparecido político mais jovem do país
Na Rua Goiás, Centro de Sorocaba, uma casa adornada com uma estátua de cegonha no telhado “guarda” as memórias de infância de Marcos Antônio Dias Baptista, o desaparecido político mais jovem do Brasil.
Marcos é filho de Maria de Campos e Valdomiro Dias Batista, e irmão de sete, alguns dos quais nunca chegou a conhecer. De classe média, a família deixou o interior de SP para encontrar melhores condições em Goiânia (GO). “Minha família veio em agosto de 1960. O Marcos completou sete anos em 7 de agosto de 1960, em Goiânia já”, comenta um dos irmãos de Marcos, o jornalista e escritor Renato Dias Baptista.
Marcos Antônio Dias Baptista, o desaparecido político mais jovem do país, viveu a infância em Sorocaba, no interior de SP
Renato Dias Baptista/Arquivo pessoal
Em 1964, o Brasil já vivia há quatro anos sob o regime militar quando Marcos tomou consciência política, aos 15. Dentro da sala de aula do Colégio Ateneu Dom Bosco, o jovem se revoltou com a série de assassinatos de secundaristas em todo o país.
O estopim foi a morte do secundarista Edson Luís Lima Souto, em 28 de março de 1968, assassinado dentro de um restaurante, no centro do Rio. “Explodiram manifestações estudantis no Brasil inteiro, inclusive em Goiânia, de três a cinco mil estudantes foram às ruas, inclusive o Marcos Antônio, essa foi a primeira participação dele”, lembra o irmão Renato.
“Isso criou um impacto na cabeça dele, de que isso não é certo. E aí as manifestações em Goiânia continuaram a crescer, como no Brasil inteiro, e ele chegou a participar de um congresso de estudantes em Salvador. Aí era um caminho sem volta, ele foi sendo lapidado e formando a sua consciência política.”
Policiais militares vigiam protesto de estudantes no Centro do Rio de Janeiro contra a ditadura militar e passam por pichação com os dizeres ‘Ditadura assassina’, em 1º de abril de 1968
Correio da Manhã/Arquivo Nacional
Renato conta que o irmão passou a participar de atividades políticas organizadas em 1969. O que colocou-o na mira da repressão foi a defesa a luta armada e a explosão de um jipe do coronel do exército e secretário de segurança pública Pitanga Maia.
No ano seguinte, em 1970, Marcos desapareceu. “Ele estava no primeiro ano do chamado ensino médio de hoje (…) ele queria se formar em medicina”, diz o jornalista e escritor.
“Seus restos mortais desaparecidos nunca foram entregues à família. De 1970 a 1980, minha mãe deixou a porta aberta, esperando em vão o seu retorno.”
Publicação em jornal local para apresentação de Marco Dias Baptista à delegacia
Renato Dias Baptista/Arquivo pessoal
“Passado que não passa”
Após perder a esperança de que o Marcos voltaria pela porta da frente de casa, Maria Dias Baptista passou a buscar informações com militantes, documentos oficiais e funcionários do governo.
“Passou a lutar, de 1980 até 2006, para encontrar os restos mortais, assim como documentos confidenciais do Exército, Marinha, Aeronáutica e técnico de óbitos, que pudessem relatá-los onde estariam, em que circunstância ele foi morto (…) minha mãe e meu pai, rodaram o Brasil atrás de presídios para ver se o Marcos estaria preso ou não. E… em nada encontraram”, acrescenta o irmão, Renato Dias.
Maria de Campos Baptista, mãe do desaparecido político mais jovem do país, esperou o filho com a porta aberta por 10 anos
Renato Dias Baptista/Arquivo pessoal
Em 15 de fevereiro de 2006, a família conseguiu por meio de uma ação judicial uma audiência com o vice-presidente e ministro da defesa da época, José Alencar. Segundo Renato, em Brasília, Alencar e outros funcionários do Estado mostraram-se empenhados em dar um ponto final no drama vivido pelos Dias Baptista.
O vice-presidente da época, José Alencar, se reuniu com Maria Baptista para discutir as investigações a respeito do paradeiro de Marcos, aos 15 anos, vítima da ditadura
Renato Dias Baptista/Arquivo pessoal
Na volta para Goiânia pela BR-153, outro veículo invadiu a faixa contrária e atingiu o carro da família. Maria Dias Baptista morreu na hora, sem uma resposta concreta do Estado.
“Os restos mortais do Marcos Antônio Dias Baptista, assim como de Rubens Paiva, nunca foram entregues às suas respectivas famílias (…) É uma história que não tem fim, é um passado que não passa, e que nós queremos, sim, elucidar”, lamenta o jornalista e escritor Renato.
Maria de Campos Baptista passou por mais de dez anos procurando pelo filho, Marco, que desapareceu após ser preso em GO
Renato Dias Baptista/Arquivo pessoal
“Eu só disse meu nome”
Conhecido por gostar de terra, o jovem franzido, de óculos grossos, apelidado de “Minhoca”, o jovem Alexandre Vannucchi, de Sorocaba, foi torturado até a morte nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi).
O estudante de geologia da Universidade de São Paulo (USP) tinha 22 anos e virou símbolo da luta pela liberdade.
Relembre a história de Alexandre Vannucchi, mártir que virou símbolo de luta pela liberdade
Alexandre Vannucchi Leme
Arquivo Pessoal
Enquanto esteve preso, depois de uma sessão de tortura, ele gritou para que ouvissem:
“Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Sou estudante de geologia. Me acusam de ser da ALN. Eu só disse o meu nome”.
Conheça a história do sorocabano preso e torturado por policiais na ditadura militar
Os amigos perceberam que Alexandre havia “caído” porque ele se atrasou em um ponto, ou seja, não aparecer no encontro era sinônimo de que a pessoa havia sido capturada. Logo a informação se espalhou.
Em Sorocaba, a 100 quilômetros de São Paulo, a família soube da prisão por meio de um telefonema anônimo. “E quem atendeu foi o irmão mais novo dele. Um amigo disse: venham logo, o Alexandre foi preso”, lembra o tio do estudante, Aldo Vannucchi.
O jovem foi capturado na véspera de ser assassinado. Assim como outros presos políticos, ele foi torturado e morreu em decorrência das agressões. Uma das hipóteses é de que os torturadores se aproveitaram da cicatriz de uma recente cirurgia para retirada de apêndice. Aos 94 anos, Aldo conta que a família demorou alguns dias para saber o que havia acontecido.
“Meu cunhado, pai do Alexandre, foi a vários hospitais… Eu não podia, também era visado. Só fui ao hospital militar no Cambuci, lá sabia que a direção era de freiras. Uma irmã disse que o Alexandre não estava lá”, relata.
Turma de Geologia na estrada para Itu, em 1970
Roberto Nakamura
Aldo também chegou a ser preso durante a ditadura e acredita que a proximidade com o sobrinho contribuiu para que os dois defendessem os mesmos ideais
“Ele via e ouvia as minhas ideias em conversas e pelo rádio, acredito que tenham ficado algumas sementes ali. E entrando lá [USP] já começou a mostrar que tinha uma certa liderança intelectual”. Foi quando Alexandre se aproximou da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Por meio de outro telefonema, Aldo soube do trágico desfecho da prisão do sobrinho. Do outro lado da linha, uma pessoa perguntou se ele já havia lido uma reportagem publicada em jornal impresso com o título “Subversivo tenta fugir mas morre atropelado”. Uma tentativa do regime militar de culpar a própria vítima morta sob tortura.
Por outro lado, um delegado disse à família que o estudante havia cometido suicídio. Contradições que escancararam a verdade: Minhoca, jovem que passou em primeiro lugar na USP, que não perdia aula e vivia na simplicidade, tinha sido morto.
A identificação só foi possível graças a um molde dentário guardado pelo estudante depois de um tratamento feito dois meses antes do assassinato. Foram mais alguns anos de espera até as cinzas chegarem à família.
Funeral de Alexandre em Sorocaba (1983)
Arquivo Pessoal
A lápide dos Vannucchi fica no cemitério da Saudade e, assim como outras, carrega marcas de vandalismo. “Assassinado pelo regime militar, à espera do tempo da Justiça” é a inscrição da lápide de Minhoca.
Além de Marcos, Alexandre e Gerardo, outras 431 pessoas morreram durante a ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985. Veja, na linha do tempo abaixo, a quantidade de mortos e desaparecidos no Brasil:
Repressão militar fez 434 mortos e desaparecidos políticos
Najú Lima/Arte g1
“Morte violenta causada pelo Estado”
Cartórios de todo o país estão sendo notificados a cumprir uma resolução aprovada por unanimidade pelo CNJ. As certidões de óbito de 202 mortos durante a ditadura têm que ser corrigidas. Já os 232 desaparecidos durante o regime militar terão finalmente direito a um atestado de óbito. E todos os registros terão que informar que essas pessoas foram vítimas da violência cometida pelo Estado. A Comissão Nacional da Verdade foi quem reconheceu o número total de 434 mortos e desaparecidos na ditadura.
Mapa de mortos e desaparecidos na ditadura
Reprodução/g1
Apesar de ainda não ter recebido a certidão de óbito retificada, a família Dias Baptista comemora a decisão. “Reconhece a presença da violência do Estado no desaparecimento de dissidentes políticos e contribui com mais um passo no sentido da reparação histórica contra a violação da democracia.”
“É um momento singular, sobretudo agora em que ganhou dimensão de massa e visibilidade a história dos aparecidos políticos, no personagem do Rubens Beiroto Paiva, a Fernanda Torres lavou a alma do Brasil. Essa história está muito presente ainda. O Brasil não virou a página”, finaliza Renato, irmão do desaparecido político mais jovem do Brasil.
A família de Vannucchi havia recebido a certidão retificada em 2013, após muita luta na Justiça, comenta o jornalista e primo de Alexandre, Camilo Vannucchi.
“No caso do Alexandre, a versão oficial, na época, em 1973, é que ele tinha sido morto atropelado por um caminhão. Isso constava como trauma do acidente. E o atestado de óbito retificado, em 2013, mostra que ele foi vítima de maus-tratos e tem o local da morte, que não é mais uma rua no Brás, onde ele teria sido atropelado pelo caminhão, mas nas dependências do 2º Exército, na sede do DOI-CODI de São Paulo, na esquina da Tomás Carvalhal com a Rua Tutóia”, acrescenta.
Agora, continua Camilo, isso deixa de ser uma responsabilidade da família, dos familiares, dos herdeiros, mas uma responsabilidade do próprio Estado, o Estado criminoso, o Estado assassino, o Estado que causou essas mortes, retificar, contar a verdade, que é uma espécie de mea-culpa também.”
‘Ainda estou aqui’ é símbolo de reconciliação, diz Marcelo Rubens Paiva após Globo de Ouro
Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí
VÍDEOS: assista às reportagens da TV TEM

Bookmark the permalink.