As pessoas que ‘enxergam’ línguas estrangeiras


A sinestesia é uma condição neurológica que melhora a memória e o aprendizado. Agora, cientistas dizem que ver em cores pode ajudar a aprender uma segunda língua. Os cientistas defendem que a sinestesia pode ajudar as pessoas a aprender idiomas
Serenity Strull/ BBC/ Getty Images
O nome da minha mãe é da cor do leite. As cordas de uma guitarra acústica, quando dedilhadas, tocam o amarelo forte do favo de mel.
O som é plano, duro ou macio. E segunda-feira é cor-de-rosa.
Estas sensações são sempre as mesmas e estão sempre presentes. Trata-se da sinestesia – no meu caso, sinestesia grafema-cor, sinestesia som-cor e sinestesia auditiva-tátil.
Como ocorre com muitas pessoas sinestésicas, descobri ainda jovem que eu tinha talento para a música e os idiomas.
Na música, eu não me destacava no ato físico de me apresentar, mas sim na composição. Eu me tornei compositora para filmes curtos e dança teatral, além de editora de sons para televisão.
Para mim, escrever música se parecia muito com um idioma, já que eu “via” as cores dos sons de forma parecida. Também estudei francês, alemão, espanhol e linguística – e a cor dos idiomas me ajuda a lembrar as palavras e os padrões gramaticais.
A sinestesia é um fenômeno neurológico que faz com que cerca de 4,4% das pessoas vivenciem o mundo como uma cacofonia de sensações.
Foram identificados cerca de 60 tipos diferentes de sinestesia, mas pode haver mais de 100 e alguns tipos são vivenciados de forma conjunta.
Acredita-se que esta condição seja causada por características genéticas hereditárias que afetam o desenvolvimento estrutural e funcional do cérebro.
O aumento da comunicação entre regiões sensoriais do cérebro significa, por exemplo, que as palavras podem estimular o paladar, sequências de números podem ser percebidas em disposições espaciais ou a sensação das texturas pode desencadear emoções.
A sinestesia não é considerada um distúrbio neurológico. Ela está relacionada a condições de saúde mental e desenvolvimento neurológico, incluindo autismo, ansiedade e esquizofrenia. Mas ela é descrita como “realidade perceptiva alternativa”, geralmente considerada benéfica.
“Quando eu era mais jovem, sabia que observava o mundo de um jeito diferente e minha forma de descrever aquilo para os outros era ‘colorida'”, conta Smadar Frisch.
Frisch tem sinestesia grafema-cor, sinestesia som-cor e sinestesia léxico-gustativa, que faz as palavras terem sabor. Ela explora o mundo dos sentidos no seu podcast, Chromatic Minds (“Mentes cromáticas”, em tradução livre). E, no momento, está escrevendo seu primeiro livro sobre o tema.
“Aprender na escola era demais para mim, em termos sensoriais”, ela conta. “É muito difícil tentar solucionar uma equação quando toda a coloração de uma série de números era uma explosão psicodélica.”
Este jato de cores, segundo Frisch, pode fazer com que ela perca o foco e esqueça o que está fazendo.
“[Era o] mesmo com a linguagem”, ela conta. “As cores, músicas e sensações de paladar das palavras me inflamavam e eu queria tanto me expressar, que perdia o foco.”
A sinestesia grafema-cor permite que a pessoa ‘veja’ padrões, o que é uma capacidade fundamental para o aprendizado de idiomas
Serenity Strull/ BBC/ Getty Images
Somente quando havia quase terminado o ensino médio, ela conheceu o livro de Richard Cytowic e David Eagleman, Wednesday is Indigo Blue (“Quarta-feira é azul índigo”, em tradução livre).
“Minha ideia inicial era que quarta-feira, na verdade, é laranja”, conta Frisch. “E eu precisava conseguir este livro.” Para ela, foi uma reviravolta.
“Finalmente compreendi como o meu cérebro sinestésico é ligado e conectado. E pensei comigo mesma como este fenômeno é incrível. Posso usar as cores para me ajudar a aprender, em vez de me confundir.”
Frisch desenvolveu um sistema de codificação por cores para ajudá-la a aprender novos idiomas de forma rápida e fluente. Estudar idiomas não parecia mais algo confuso, mas sim “organizado”, segundo ela.
“E funcionou! Meu mundo inteiro mudou. Fui aprender aquilo em que o meu cérebro estava destinado a se destacar: idiomas.”
Frisch conta que conseguiu aprender francês e espanhol até chegar ao nível avançado em apenas dois meses. “Tive nota 90+ em cada exame [de francês e espanhol]”, afirma ela.
Estes exames fizeram parte do seu Te’udat Bagrut, a qualificação obtida em Israel ao término do ensino médio. Frisch conta que, atualmente, sabe falar sete idiomas com fluência – e que pode aprender qualquer idioma que quiser, “sem dificuldade e em pouco tempo”.
Julia Simner é diretora do laboratório de Pesquisa sobre Sinestesia Multissensorial da Universidade de Sussex, no Reino Unido. Ela e sua equipe examinaram cerca de 6 mil crianças com seis a 10 anos de idade.
“Selecionamos cada um individualmente para determinar a sinestesia e, em seguida, oferecemos [a eles] uma bateria de testes para determinar quais técnicas são favorecidas por esta particularidade”, explica ela.
O estudo concluiu que as crianças com sinestesia obtiveram melhores resultados em uma série de técnicas do que as crianças que não vivenciam o fenômeno. E estas técnicas, segundo Simner, “certamente auxiliam o aprendizado do primeiro e segundo idiomas”.
“Especificamente, elas apresentaram desempenho significativamente melhor em vocabulário receptivo (quantas palavras elas conseguiam entender), vocabulário produtivo (quantas palavras elas sabiam dizer), armazenamento de memória de curto prazo, atenção aos detalhes e criatividade”, afirma ela.
“Estas técnicas relacionadas à sinestesia indicam que podemos esperar que o aprendizado de um segundo idioma seja mais fácil para alguém com sinestesia.”
Simner explica que ter cores sinestésicas torna as letras mais fáceis de serem memorizadas. E as cores da sinestesia podem passar de um idioma para outro, fazendo com que as palavras no segundo idioma também sejam memorizadas com mais facilidade.
“Essas cores podem migrar entre os idiomas pela aparência ou pelo som das letras”, explica Simner. “É como se a cor se transferisse de um idioma para outro.”
Caleidoscópio de palavras
Em 2019, outro experimento liderado pelos psicólogos da Universidade de Toronto, no Canadá, descobriu a sinestesia grafema-cor. Nela, cada letra ou número possui sua própria cor distinta, fornecendo uma vantagem significativa de aprendizado estatístico – a possibilidade de que a pessoa “veja” padrões, o que é uma capacidade fundamental para o aprendizado de idiomas.
Os pesquisadores pediram aos participantes que ouvissem um conjunto de palavras sem sentido, como “mucá” e “beô”. Elas representavam um idioma “artificial”.
Em seguida, eles ouviram um segundo conjunto de palavras, que incluía as palavras artificiais originais e novas palavras artificiais que representavam um idioma “estrangeiro”. E foi pedido aos participantes que diferenciassem as “palavras” de cada um dos dois idiomas artificiais.
“Não havia significado”, explica a psicóloga Amy Finn, diretora do laboratório de desenvolvimento e neurociências cognitivas da Universidade de Toronto, Finn Land Lab.
“Ele foi elaborado para observar a ‘segmentação’ – ou como você usa as regularidades para selecionar quais são os segmentos de linguagem. Esta é uma questão muito primitiva, mas superimportante no início do aprendizado de um idioma.”
Os resultados demonstraram que as pessoas sinestésicas grafema-cor possuem mais capacidade de diferenciar entre os dois “idiomas” do que os participantes que não têm sinestesia.
“Achamos que [a sinestesia] pode ajudar a analisar as partes do idioma com mais facilidade”, afirma Finn.
Quando as pessoas sinestésicas vivenciam os mesmos padrões com mais de um sentido – por exemplo, oral e visualmente – sua mente forma uma nova indicação secundária, que pode ajudá-los a reconhecer ou relembrar o padrão.
A sinestesia pode ser descrita como ‘realidade perceptual alternativa’
Serenity Strull/ BBC/ Getty Images
Isso me faz lembrar de quando eu tinha 11 anos de idade e fui colocada em uma situação difícil na minha primeira semana do ensino médio.
“Como se diz ‘trabalho’?”, pergunta meu professor de francês.
A classe fica em silêncio. Eu sei que a palavra é azul e ela vem à minha mente. “Travail”, respondo eu.
Às vezes, não consigo me lembrar de uma palavra, mas sim da cor. Isso pode ser frustrante porque, se eu disser “é rosa”, ninguém pode me ajudar, já que as cores são exclusivas da minha mente.
Por outro lado, a cor serve de lembrete adicional, um bônus que posso usar quando aprendo novos idiomas.
Você talvez imagine que a sinestesia é mais comum em crianças bilíngues. Mas as pesquisas indicam que as pessoas que aprendem um segundo idioma depois da primeira infância têm mais probabilidade de apresentar esta capacidade de alteração sensorial do que aquelas que são bilíngues nativas. Isso reforça a teoria de que a sinestesia se desenvolve como ferramenta de aprendizado.
A sinestesia surge na infância, quando a criança começa a absorver o mundo à sua volta e aprende a falar, ler e escrever.
Um estudo realizado em 2016 por pesquisadores do Canadá, Estados Unidos e República Checa concluiu que as crianças aprendem a classificar cores entre as idades de quatro e sete anos, mais ou menos na época em que elas começam a ler e escrever. E a sinestesia começa a surgir a partir dos seis anos de idade.
Os autores do estudo concluíram que “as crianças usam sua capacidade recém-adquirida para classificar a cor como um auxílio não ortodoxo para dominar o conhecimento das letras e palavras”.
Mas a sinestesia, em alguns casos, pode dificultar a comunicação. E a noção de que ela pode funcionar como estratégia para facilitar o aprendizado “permanece tema de debate”, afirma a psicóloga Lucie Bouvet, da Universidade de Toulouse, na França.
“Na sinestesia fonema-cor, todos os fonemas – a menor unidade falada – evocam a percepção de cores específicas”, afirma Bouvet.
Esta é a experiência de uma mulher identificada como “VA” em um estudo de 2023. Bouvet é uma das autoras do trabalho.
Sempre que VA ouve um som “a” forte, por exemplo, ela vê um tom verde-azulado luminoso. E, sempre que ela ouve “k”, ela observa vermelho.
“VA descreve uma forma de pensar em imagens, em que as palavras funcionam como segundo idioma”, explica Bouvet. “As cores evocadas pelos fonemas a ajudam a ter acesso ao significado.”
O processo de comunicação de VA consiste em ouvir os sons, ver as cores e traduzir o significado daquelas cores. Este esforço de dupla tradução pode fazer com que VA não consiga acompanhar as conversas.
“Em casos raros, os indivíduos podem ficar sobrecarregados pela sinestesia, com a sensação de que suas experiências internas interferem na sua percepção do mundo exterior”, explica Bouvet.
Sejam elas úteis ou não para os sinestésicos, as pesquisas sobre a sinestesia podem nos ajudar a compreender os processos cognitivos da linguagem e percepção.
“A sinestesia, por si só, é um fenômeno interessante”, afirma Bouvet. “Mas as pesquisas recentes indicam que ela faz parte de um perfil cognitivo específico mais amplo. Identificar esse perfil cognitivo único pode ser fundamental para obter conhecimento mais profundo da sinestesia.”
Para mim, viver com uma miscelânea de sensações é motivo de alegria.
Ouvir música é uma experiência totalmente imersiva. Eu mergulho em um oceano de texturas, como se estivesse embaixo de um edredom macio ou submersa em água fria.
As palavras de um livro não são apenas tinta inerte sobre uma página. Elas trazem a história para a vida, rodopiando à minha volta.
E a linguagem preenche o ar com as cores de um caleidoscópio.
Leia a versão original desta reportagem no site BBC Innovation.
Fruta milagrosa para limpar gordura do fígado: o que a ciência diz sobre detox polêmico
Hipertensão pode ser fatal: veja quais alimentos prejudicam o controle da pressão
Uso de telas na cama aumenta risco de insônia
Bookmark the permalink.