Como morte de bebê com anencefalia inspirou casal a lutar por mudanças na legislação de doação de órgãos


Caso ganhou repercussão nacional e completa 27 anos neste sábado (24). Da dor e frustração, nasceu o Instituto Gabriel, voltado ao incentivo irrestrito de doação de órgãos e tecidos. Morte de bebê com anencefalia inspira casal a lutar por mudanças na doação de órgãos
Ao nascer, Gabrielle de Azevedo Carvalho não chorou. O silêncio se somou à atmosfera de tensão na sala de parto e à aflição dos pais, que não puderam ver o rosto da filha assim que ela veio ao mundo. Isso porque ela tinha anencefalia, uma condição considerada incompatível com a vida.
A anencefalia foi descoberta ainda durante a gravidez. Apesar do prognóstico, os pais decidiram seguir com a gestação, movidos por um propósito: doar os órgãos da filha e ajudar a salvar outras crianças.
Gabrielle morreu em 24 de maio de 1998, 1h30 depois do parto, sem doar nenhum órgão. Tomados pela frustração e pela vontade de mudar o sistema, Maria Inês e Valdir, pais da menina e moradores de Indaiatuba (SP), decidiram fundar o Instituto Gabriel.
A decisão, no entanto, esbarrou em barreiras médicas e legais que perduram no Brasil até hoje e acabou não se concretizando.
A organização sem fins lucrativos atua em duas frentes: a prevenção de malformações congênitas, principalmente ligadas à deficiência de ácido fólico, e a defesa da legalização da doação de órgãos de bebês anencéfalos. Hoje, o instituto também trabalha com o incentivo irrestrito de doação de órgãos e tecidos.
🔎 A anencefalia é uma malformação resultante da falha de fechamento do tubo neural (a estrutura que dá origem ao cérebro e a medula espinhal), atrapalhando o desenvolvimento da parte do corpo responsável por proteger o cérebro. Assim, ele não se desenvolve.
Diagnóstico e decisão
Antes de Gabrielle, Maria Inês de Carvalho teve outras cinco gestações. A primeira resultou no nascimento de Débora, hoje com 41 anos. A segunda terminou em aborto espontâneo no terceiro mês.
Na terceira, nasceu Susana, diagnosticada com anencefalia somente após o parto, que morreu pouco depois de nascer. As duas gestações seguintes, uma menina e depois um menino, chegaram ao oitavo mês, mas os bebês morreram ainda no útero, provavelmente por malformações.
Em 1997, aos 40 anos, Maria Inês engravidou de Gabrielle. A gestação não foi planejada, mas o casal acreditava que, dessa vez, conseguiria dar à luz uma criança saudável.
“O médico falou lá atrás para a gente que era uma loteria [ter filhos com malformações]. Não conheço ninguém que ganhou quatro vezes na loteria. Eu falei ‘Agora vai ser tudo bem, vai correr tudo bem’. […] Quando nós fomos fazer a ultrassom, constatou que ela também tinha anencefalia”, lamenta.
A descoberta da possível causa só veio nessa quinta gravidez: um geneticista explicou que a origem das malformações poderia estar na incapacidade do organismo da mãe de absorver ácido fólico, nutriente fundamental para o desenvolvimento do tubo neural nos primeiros dias de gestação.
“Se eu tivesse ingerido o ácido fólico anterior à concepção, eu poderia até ter evitado. Não é 100%, mas era uma grande chance de ter evitado essas malformações. Eu não sabia”, relembra Maria Inês.
Com a gravidez de Gabrielle, já cientes da evolução inevitável da anencefalia, os pais buscaram uma alternativa: seguir com a gestação e doar os órgãos da bebê. A intenção era transformar a dor em solidariedade. Mas a Central de Transplantes negou a doação.
O casal recorreu ao Conselho Regional de Medicina (Cremesp), que deu parecer favorável, alegando que a recém-nascida, sem cérebro, já nasceria em estado de morte. O Conselho Federal de Medicina (CFM), porém, recomendou manter a bebê em UTI por sete dias para cumprimento do protocolo de morte encefálica.
Sem conseguir viabilizar a doação, o casal optou por doar o corpo da filha para estudos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na esperança de que a história dela pudesse, de alguma forma, contribuir para o avanço da ciência.
“A gente se deparou com uma lei nova, um país perdido, porque não tinha nada, não tinha estatística. A gente foi para a Central de Transplantes e não tinha nem número de quantas crianças poderiam ser receber os órgãos da Gabrielle”, conta a mãe.
Maria Inês Toledo de Azevedo Carvalho, mãe da Gabrielle e fundadora do Instituto Gabriel
Estevão Mamédio/g1
Imbróglio legal
A doação de órgãos de recém-nascidos com anencefalia esbarra em um impasse técnico e legal que permanece sem solução definitiva no Brasil.
Segundo a lei nº 9.434/1997, que regula a remoção de órgãos para transplante, é obrigatória a constatação de morte encefálica para que a doação ocorra em pacientes com atividade cardíaca — ou seja, em casos em que o coração ainda bate.
No entanto, essa condição não pode ser aplicada a recém-nascidos com anencefalia, já que eles não possuem cérebro desenvolvido (córtex cerebral), mas o tronco encefálico pode funcionar por algumas horas ou dias, mantendo batimentos cardíacos e respiração com suporte.
Além disso, a resolução do Conselho Federal de Medicina (nº 2.173/2017) estabelece que o diagnóstico de morte encefálica só pode ser feito em recém-nascidos com 7 dias de vida ou mais, devido à imaturidade do sistema nervoso. Como bebês com anencefalia geralmente morrem antes disso, não há tempo para que o protocolo seja concluído.
Essa combinação de fatores torna inviável, na prática, a doação de órgãos como o coração, que só pode ser transplantado se estiver batendo. Como a legislação só permite a retirada após a parada cardíaca irreversível, os órgãos mais sensíveis à falta de oxigenação perdem a viabilidade.
É por isso que, apesar da vontade de famílias em doar, os recém-nascidos com anencefalia não são considerados potenciais doadores no sistema atual.
O que dizem as instituições
➡️ Procurado pelo g1, o Conselho Federal de Medicina informou que “a avaliação neurológica desses pacientes, bem como as questões éticas e bioéticas envolvidas, são tema de estudo e atenção”, especificamente da Câmara Técnica de Morte Encefálica.
Segundo o órgão, “não se faz adequado determinar o diagnóstico de morte encefálica em menores de 7 dias”, devido à imaturidade do sistema nervoso. A resolução em vigor determina a necessidade de dois médicos capacitados para a realização do exame clínico, além de um exame complementar.
➡️ O Ministério da Saúde afirma que as normas atuais estão previstas na Portaria nº 487/2007, incorporada ao Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes. A retirada de órgãos em casos de anencefalia exige parada cardíaca irreversível. Como a anencefalia inviabiliza o diagnóstico legal de morte encefálica, os recém-nascidos com essa condição não são considerados potenciais doadores.
Ainda segundo o ministério, o regulamento está em processo de atualização, mas não haverá mudança de entendimento sobre a anencefalia, somente ajustes para tornar a norma mais clara.
➡️ A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) também concorda com a resolução vigente do CFM. Em nota, a entidade ressaltou que “RN anencefálicos não preenchem critério para determinação de morte encefálica” e, portanto, “não podem ser considerados doadores”.
A associação observa ainda que, embora o transplante renal não seja viável em recém-nascidos, há casos em que bebês com poucos dias de vida necessitam de transplante cardíaco, um tipo de doação hoje inviabilizada por esses critérios.
Do luto à mobilização
O Instituto Gabriel atua com uma pequena equipe e depende de doações e da Nota Fiscal Paulista. Além do foco na anencefalia, o grupo também promove campanhas sobre o uso preventivo de ácido fólico, apoia famílias que desejam doar órgãos e advoga por mudanças legais que viabilizem a doação neonatal em casos de anencefalia.
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O objetivo atual, de acordo com Maria Inês, é tornar Indaiatuba uma referência estadual em captação de órgãos.
Eu não tinha força, não tinha condição de mudar aquele quadro de tudo que nós passamos, mas a gente tem como mudar o que a gente vai fazer a partir dali. Então é isso que te dá energia. Faria tudo de novo, com certeza, porque eu conheci muita gente boa nesse caminho.
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