Resgatada de casa em SC, acreana conta que apanhava e era proibida de usar o celular; suspeita foi indiciada por maus-tratos


Após sair do Acre no início de 2023, jovem diz que conheceu uma mulher que a ofereceu casa e trabalho. Porém, ao ser acolhida, começou a sofrer violência física e psicológica, e foi impedida de se comunicar com a família. Polícia Civil do estado catarinense investigou o caso e indiciou a mulher por maus tratos. Jovem saiu do Acre e acabou sendo vítima de maus-tratos em uma casa em SC
Reprodução
“Ela me batia muito na frente da netinha dela. Chegou a botar faca no meu pescoço, na frente da neta dela. A netinha dela falou que não era pra ela fazer isso comigo. E ela ‘tava’ me ameaçando, disse que ia me colocar na cadeia, porque eu ‘tava’ acabando com a vida dela”
Esse é o relato de uma jovem que morava em Sena Madureira, no interior do Acre. Agora, ela vive em uma casa do Coletivo Mulheres do Brasil em Ação (CMBA), uma Organização Não-Governamental (ONG) que atende mulheres vítimas de violência em Santa Catarina. Para preservar a identidade da jovem, vamos chamá-la de Lúcia nessa reportagem.
Lúcia tem 19 anos e saiu do Acre no início de 2023. Nesta entrevista, ela não explicou porque e como saiu do estado, mas disse que, ao chegar em Santa Catarina, em março do ano passado, conheceu uma mulher que lhe ofereceu abrigo e trabalho.
“Disse que se eu ficasse com ela, ela ia deixar eu arrumar um emprego, bem bom mesmo. Daí, ela ia me pagar as coisas que eu fazia na casa dela. Depois, o filho dela se separou, e a netinha dela veio morar com ela. Depois que a neta dela veio morar com ela, ela mudou. Ela mudou assim, totalmente”, diz.
Sem contato com a família
Além da violência física e psicológica, Lúcia afirma que era impedida de ir embora da casa onde estava no município de Penha, no litoral norte de Santa Catarina, e de ter contato com a família no Acre.
“Eu pedi para ir embora, ela não deixava. Ela pegava a chave da casa, trancava, colocava dentro do quarto dela e não deixava eu sair para nem um lugar. Não deixava eu conversar com ninguém. Tomou meu celular. Passei três meses sem meu celular. Minha mãe faleceu, quando a minha mãe ‘tava’ doente, ela ficava do meu lado dizendo que eu não podia demorar para falar com ela. E… falou um bocado de coisa, que as minhas irmãs não queriam saber de mim. E nisso, eu me machuquei bastante. Ela me prometeu outra coisa, que ia ajudar a procurar minha mãe. Eu sou adotada, eu não conheço minha mãe biológica. Depois, ela falou que a minha mãe não queria saber de mim. Muitas coisas eu passei, e eu não consigo muito falar porque senão eu vou chorar”, relembra.
Uma irmã de Lúcia, que mora na capital acreana e prefere não se identificar, relata que a família ficou 6 meses sem notícias da jovem.
“Na verdade, ela não sabe ler. Eu não sei nem como ela conseguiu sair daqui do Acre. A gente não conseguia contato, não tinha como saber notícia dela. A gente pensava um monte de coisa. Pensava até que tinha acontecido o pior com ela. Porque quando ela sumiu, a gente tentava contato. Minha mãe faleceu, ela não conseguiu vir. E pelo que ela falou, a mulher não deixava nem ela falar com a gente para saber notícia da minha mãe”, conta a irmã.
Acreana resgatada de casa em Santa Catarina relata rotina de agressões e ameaça
Lúcia relata ainda que só agora está conseguindo explicar aos familiares o porquê da ausência quando a mãe faleceu.
“Me mandaram um bocado de mensagem, me ligando, falando que minha mãe tinha falecido, mas como eu não ‘tava’ podendo pegar no meu celular, daí a minha mãe morreu, eu não cheguei a ir para o velório dela. Não entrei em contato com minha família. Minha família hoje tá querendo me entender, o motivo do que aconteceu, porque eu não fui”, diz.
Lúcia tem um filho de 5 anos. A criança ficou com o pai depois que ela deixou o Acre. A jovem afirma que sofria violência doméstica e que hoje não consegue falar com o filho.
“O que eu quero para o meu futuro é trabalhar. Ter o meu lugar, uma casinha para viver e poder buscar o meu filho. Ter uma vida boa. Vida digna de uma mulher. Eu quero ir procurar esse tempo todo que eu ‘tava’ trabalhando para essa mulher, e eu quero cobrar dela, porque eu trabalhei de graça para ela. E ela me humilhou bastante, me xingou bastante, me deu muito preconceito”, lamenta.
Denúncia
A situação de violência foi denunciada à polícia de Santa Catarina. A presidente do CMBA recebeu informações sobre o caso e procurou a polícia, conta a presidente Regina Santos.
“Eu recebi essa denúncia através da procuradoria da mulher, do município de Piçarras, pela vereadora Adriana, dizendo que havia uma mulher que estava passando por uma situação de violência doméstica e que tinha recebido uma denúncia de uma pessoa que estava trabalhando em frente a essa casa. E que não tinha sido a primeira vez”, explica a presidente.
Ela diz que barulhos de choro viam da casa e a polícia foi acionada. “Sempre em um determinado horário, ouvia choro e alguns barulhos como se tivesse tendo algumas brigas. Então, eu liguei para a delegacia, pedi para falar com Alan. Ele é responsável pela sala lilás, nós trabalhamos em conjunto. Então, realmente, ele foi até lá e constatou que havia realmente essa moça e que estava sendo maltratada. Inclusive, nesse dia, tinha ocorrido uma agressão física. Então, ele colocou ela dentro da viatura, e a levou até a delegacia e entrou em contato comigo pedindo um acolhimento, para que a gente pudesse protegê-la”, acrescenta.
Em 16 de novembro do ano passado, policiais civis levaram os envolvidos para a delegacia. A suspeita do crime foi investigada em liberdade, conforme o delegado Ângelo Fragelli, responsável pelo caso. Segundo o delegado, no momento da ação na casa da suspeita não foi possível configurar o flagrante do crime de trabalho análogo à escravidão.
Conforme o artigo 149 do código penal, a condição análoga à de escravo se caracteriza pela submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e à restrição de locomoção do trabalhador.
“A princípio, por aquilo que a jovem nos disse e pelo que a própria suspeita também declarou, não estava ali configurada qualquer situação de flagrante desse crime. Por isso, optamos na época por tomar os depoimentos, instaurar o inquérito policial, prosseguir com as investigações, mas nós não mantemos a pessoa suspeita presa desde aquele momento, porque ali não estava muito claro essa situação”, comenta Fragelli.
Investigação
Em depoimento, a suspeita afirmou que acolheu a vítima na casa dela e que, antes disso, a jovem estava em situação de rua. O nome da investigada não foi divulgado porque o caso foi tratado em sigilo.
Após a conclusão das investigações, o inquérito foi enviado ao poder judiciário, e será encaminhado ao Ministério Público que poderá denunciar a suspeita para que seja processada pelo crime indicado pela polícia.
Lúcia confirmou em depoimento que foi acolhida na residência da suspeita e que saiu do Acre porque foi aliciada pelo tráfico de drogas.
“Ela mesmo afirmou que teria sido aliciada na cidade dela para trazer à região de Recife uma determinada quantidade de drogas. Então, na verdade, ela teria ido ao Recife com essas drogas de ônibus. E aí, teria sido novamente aliciada para vir aqui até o estado de Santa Catarina. Onde foi prometido para ela lucros, na verdade para promover traficância de drogas. Aparentemente, é isso”, explica o delegado”.
Mas chegando ao estado ela foi abandonada pelo namorado e ficou em situação de rua. “Acontece que tão logo chegou em Santa Catarina, ela teria tido algum tipo de relacionamento com esse aliciador, que na verdade estamos investigando se trata-se de um traficante de drogas. Esse suspeito teria ficado com ela por aproximadamente duas semanas. E ele simplesmente a abandonou na rua mesmo. Então, essa jovem estava em uma situação de rua, segundo ela mesma narra. E a princípio, essa senhora teria acolhido essa jovem na sua residência. Passado um tempo, cerca de três a cinco meses, essa senhora começou a gritar com ela, começou, aparentemente, a impedir que ela entrasse em contato com familiares”, explica o delegado.
A Polícia Civil de Santa Catarina concluiu as investigações do caso, e, de acordo com o delegado, não houve crime de redução à condição análoga à de escravo. No entanto, a autora foi indiciada pelo crime de maus-tratos. Se condenada, pode ser punida com até 1 ano de detenção.
Com apoio do CMBA, Lúcia já conseguiu um trabalho e tem atendimento psicológico. Santa Catarina é um estado escolhido por muitos jovens acreanos em busca de oportunidades. O delegado Ângelo Fragelli faz um alerta.
“Há muito aliciamento de jovens para prometidos trabalhos, com ganhos exorbitantes aqui e essas pessoas acabam sendo aliciadas para trabalhar em determinados locais. Quando a pessoa chega aqui, na verdade, descobre que é para trabalhar numa casa de prostituição. Eu mesmo já trabalhei em alguns casos semelhantes a esses. Então, principalmente o jovem, ele tem que ter muita atenção, muito cuidado, procurar pesquisar de fato essas oportunidades de trabalho. Não arriscar vir para cá sem ter uma firmeza dessas condições de trabalho, essa seria a principal dica nesses casos”, finaliza.
Reveja os telejornais do Acre

Bookmark the permalink.